sábado, 31 de outubro de 2009

No Meu Lugar - pré-estreia*



O poder da observação

A pré-estreia em Salvador de No Meu Lugar (idem – Brasil/ Portugal, 2009), do carioca e também crítico Eduardo Valente, é um expoente dos casos em que o debate pós-sessão consegue ser tão ou mais interessante do que o filme – sem que, para isso, o demérito da obra seja maior que o mérito da discussão.

O enfoque do filme está em três famílias de classes sociais diferentes, interligadas por uma tragédia. Baseado aí, as lembranças imediatas vão de Alejandro González Iñárritu (Babel, Amores Brutos) a Robert Altman (Short Cuts – Cenas da Vida, Nashville). Mas o filme de Valente, caro ao cinema brasileiro como forma de abordar a representação do ser humano e da violência, chama mais atenção pela sua abordagem do que pela sua forma de narrativa.

A resolução da primeira cena, por exemplo, deixa uma sensação de falta de coragem (ou competência) para Valente mostrar sua (in)capacidade de encenador em um momento de tensão. Terminado o filme, contudo, a certeza é de que a recusa do início não só se justifica como potencializa o efeito da obra. Ao deixar sua câmera – e a plateia, consequentemente – alheia ao que acontece, Valente demonstra que o como aquilo acontece é menos importante do que como e o que cada um viveu até chegar ali. A impressão, depois de digerida, é semelhante à do acidente no final de O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard, onde o resultado é muito mais importante do que o diretor mostrar sua capacidade de saber decupar e cortar uma cena de ação.

Aqui, Valente filma o dia-a-dia de seres humanos de carne e osso, sem que precise transformar os momentos ordinários da existência em um romance épico. Ele sabe que falar do viver, aliado ao conviver com outras classes, é uma tarefa cuja profundidade é significativa o suficiente para tornar a própria observação espinhosa. E essa observação – que a princípio pode parecer apática –, se por um lado é focada basicamente em acontecimentos banais (e que algumas vezes são demasiado genéricos), por outro é filmada com uma riqueza de detalhes que transforma essa trivialidade de ações em algo notável, cuja unicidade é trazida – ou reforçada – pelos pormenores. De uma certa tensão sexual, existente em mais de uma das famílias, à resolução (ou falta dela), muita coisa fica sem resposta ou obscura; mas não por negligência ou prolixidade desnecessária – e sim por se admitir a complexidade do que trata.

Esse mostrar o caminho sem ter que finalizá-lo numa linha de chegada talvez seja exatamente o ponto mais positivo de No Meu Lugar. Um filme que trata e se passa no Rio de Janeiro, de um carioca que lá viveu praticamente seus 34 anos de vida, e que fala de uma região e de um bairro que conhece (Laranjeiras) – sem que esse universo se torne excessivamente fechado ou, no outro extremo, recheado de recursos fáceis proporcionados por tudo a que o Rio se liga.

Diferente de um Cidade de Deus e sua aparência de documento oficial-estilizado, e de Tropa de Elite e sua resolução simplória (ainda que sejam filmes interessantes), No Meu Lugar é mais contido por não querer responder e/ou documentar/estilizar em busca de uma auto-importância que ele não necessariamente tem. E, talvez justamente por isso, é mais contundente na sua força como possibilidade de um cinema ligado a política (ainda que o enfoque seja maior no ser humano do que em uma suposta ideologia – o que não é nenhum demérito) sem soar irresponsável e/ou constrangedoramente panfletário. O que Valente faz, no fim das contas, é simplesmente dar ouvidos (e vida) aos personagens e voz a um tipo de cinema – cuja coerência com o naturalismo apresentado é dos maiores altos do cinema brasileiro recente.

Filme: No Meu Lugar (idem – Brasil/ Portugal, 2009)
Direção: Eduardo Valente
Elenco: Marcio Vito, Dedina Bernardelli, Luciana Bezerra
Duração: 113 minutos

8mm
Debate
Poderia (e gostaria de) falar muito mais do debate, mas o tempo é escasso. Ainda assim, bom dizer que o Valente, apesar de um cara com um incrível tesão pela fala, sabe ouvir e respeitar a opinião alheia – e inclusive admitiu que a trilha sonora principal, considerado ponto negativo por um dos espectadores, já havia sido considerada um revés do filme por outras pessoas (o que ele não precisava dizer).
Bom lembrar ainda o fato de a Vídeo Filmes ser uma das produtoras do filme. Video Filmes, de Walter Salles que – junto com seu irmão João Moreira Salles – já havia sido criticado pelo Valente crítico, o que não impediu o diretor de Central do Brasil perceber o potencial do roteiro do filme. É ótimo perceber não só a generosidade (palavra usada pelo próprio Valente) como a maturidade de Salles para separar as coisas. Por incrível (ou não) que possa parecer, a postura de Salles não é regra.

Rápido
Ah, e embora o www.imdb.com diga que o filme tenha 113 minutos (única minutagem disponível lá é a da França), a que assisti, acho, tinha menos – salvo engano, o Valente falou em 90 minutos.

Filmes da semana:

1. No Meu Lugar (2009), de Eduardo Valente (cinema – pré-estreia) (***1/2)

2. Herbert de Perto (2009), de Robert Berliner e Pedro Bronz (cinema) (***)
3. Delicatessen (1991), de Marc Caro e Jean-Pierre Jeunet (cinema) (**1/2)
4. Ladrão de Casaca (1955), de Alfred Hitchcock (***1/2)
5. Enquanto o Sol Não Vem (2008), de Agnès Jaoui (**) (cinema)


Top 10 de outubro:
10. Amantes (2008), de James Gray (***1/2)

9. O Homem que Incomoda (2006), de Jens Lien (***1/2)

8. A Primeira Noite de Tranquilidade (1971), de Valerio Zurlini (***1/2)

7. Ladrão de Casaca (1955), de Alfred Hitchcock (***1/2)

6. No Meu Lugar (2009), de Eduardo Valente (***1/2)

5. Por um Punhado de Dólares (1964), de Sergio Leone (***1/2)

4. Por uns Dólares a Mais (1965), de Sergio Leone (***1/2)

3. Vicky Cristina Barcelona (2006), de Woody Allen (***1/2)

2. Um Filme Falado (2003), de Manoel de Oliveira (***1/2)

1. Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino (****)

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

Um comentário:

Rafael Carvalho disse...

Leio algumas coisas do Valente e gosto do posicionamento crítico dele, e tenho muita curiosidade para conferir seu primeiro longa (embora não goste de um curta dele chamado O Mosntro). E me parece mesmo que é um cara bastante aberto às opinões relacionadas ao filme. Mas infelizmente eu só devo conferir quando chegar em DVD.

Sobre os outros filmes, também não sou muito fã de Delicatessen, embora precisasse rever o filme.

Amantes me fez repensar o cinema de James Gray e hoje eu o considero um grande cineasta e o filme está entre os melhores do ano pra mim. Melancolicamente belo.

Vicky Cristina Barcelona é um Woody Allen renovado e cheio de vigor criativo, ainda.

Um Flme Falado é uma beleza de se ver, tipo de filme dos mais renovadores e impensáveis, com resultados excelentes, apesar da simplicidade da narrativa.

E vi finalmente Bastardos Inglórios, puta filme. Foda, foda, foda. Foi pro topo dos melhores do ano. That's Bingo!