sábado, 28 de março de 2009

Gran Torino*



Sobre vitalidade e vida

Nacionalista e com postura política conhecidamente conservadora – embora não tão simplesmente resumível. Veterano do exército, escalado para a guerra da Coréia. Identificado com e ligado ao (meio) oeste norte-americano. As duas definições servem tanto para Clint Eastwood (que não foi à guerra devido a um acidente de avião) como Walt Kowalski, inicialmente um dos velhos mais ranzinzas do cinema. Com aparências indiferenciáveis em alguns momentos, ambos estão em Gran Torino (EUA/ Austrália, 2008), o novo filme do outrora Homem Sem Nome de Sergio Leone.

O diretor italiano, inclusive, vem muito à mente no começo da do filme, o que, curiosamente, não é bom. Apesar de no funeral de sua mulher, Sr. Kowalski deixa claro que maior que sua tristeza é a indignação com aqueles que não respeitam o momento do jeito que ele considera ideal. O polonês de coração americano-xenófobo resmunga o tempo todo como um velho mal-humorado caricato, e diz tudo o que pensa, mesmo quando a fala parece obviamente apenas um pensamento dele para ele mesmo. Até o cuspe de Kowalski, que nos remete, entre outros, a Henry Fonda e ao próprio Eastwood nos filmes de Leone, está menos para um clichê estilizado do velho chato do que para um excessivo didatismo na construção do personagem. Até aí, talvez numa busca por uma coerência dentro dessa incoerência (caricatura x gente), os grupos presentes e mostrados no filme funcionam como estereótipos – antes de muitos (mas não todos), enfim, terem a oportunidade de se apresentarem como além do que foi ali “criado”.

Num encontro assaz importante para o resto do filme, Kowalski ‘encontra’ uma vizinha que não o agrada por ser asiática (hmong, povo que veio para os EUA após a Guerra do Vietnã). “Por que vocês vieram de tão longe para o ‘meu’ bairro?”, e “pensei que o frio do meio-oeste americano espantasse todos os idiotas daqui” são algumas das frases de Kowalski nos primeiros momentos de relativo carinho demonstrado por ele – até então resumido a um misantropo que demonstra mais afeto a um carro que não usa (seu Gran Torino, que pouco aparece e muito complementa a idéia do filme) do que a qualquer ser humano.

Principalmente a partir daí, felizmente, torna-se mais clara a leveza com que Eastwood consegue levar Gran Torino, num contraste com a dureza de Kowalski, que em meio a tanta aspereza do início, mostra pouco a pouco empatia até para com quem ele inicialmente odeia. Sua solidão começa a ser compreendida e palpável, além de parte do que fez ele ser o que é. Com muito já realizado e impossível de ser refeito, além de pouco ainda por fazer, Kowalski tem consciência de que ele mesmo deve escolher o rumo de sua historia, e (indiretamente) dos outros. Essas decisões tomadas (e em parte a falta delas) resultam em imagens e momentos que devem martelar na cabeça de quem assiste por muito tempo.

Para melhor ilustrar a experiência, fui assistir a Gran Torino com o final na minha cabeça, graças a uma infelicidade infantil do bom Luis Carlos Merten, que sugeriu com todas as letras – no seu blog – o que acontece no fim do filme. Ainda assim, e com mosquitos que vêm por tabela no cinema do shopping Barra, me pareceu inevitável sentir o nó na garganta e encher o olho de água no final da projeção.

Em outros trabalhos memoráveis de Clint na frente e atrás das câmeras (para não falar em Dirty Harry), muito se fala da ligação de Gran Torino com Os Imperdoáveis, mas que para mim dialoga menos com esse aqui do que Menina de Ouro. A diferença é que Gran Torino, diferente do filme estrelado por Hilary Swank, parece um melodrama ainda mais enxuto, tanto pelo roteiro (de Nick Shenk, responsável por boas sacadas de humor e menos apocalíptico com seu personagem principal), como pela direção de um mestre, que sabe ser contido sem ser frio, e emocionante sem ser piegas.

Aos 78 anos, Clint Eastwood faz o tipo de cinema que talvez só ele seja capaz de fazer com tanta autoralidade e (principalmente) autoridade hoje em dia. Como se não fosse suficiente, ele também funciona praticamente como um messias da narrativa clássica bem feita, sem parecer, em nenhum momento, ter essa idéia como uma prioridade. A impressão que fica é que sua prioridade mesmo parece simplesmente fazer filmes. Com a experiência de alguém que, como Kowalski, entende de vida e de morte. E com o talento de quem sabe tratar de ambos, e como poucos, no cinema.

Fime: Gran Torino (idem, EUA/ Austrália, 2008)
Direção: Clint Eastwood
Elenco: Clint Eastwood, Bee Vang, Ahney Hor.
Duração: 116 min

8mm
Kowalski

Ver um personagem e uma persona tão marcantes como Eastwood e Walt Kowalski fizeram me lembrar de uma atuação mais potente até que o Gran Torino de Clint: Marlon Branco em Uma Rua Chamada Pecado (1951), onde ele interpreta Stanley Kowalski. Não me lembro de um sobrenome não-inglês no cinema em dois ícones-personagens tão poderosos e sem ligação entre si (mesma família não vale, como no caso dos Corleone). Alguém aí lembra de outro?

Edgar Navarro de novo
Falei do Eu Me Lembro na semana passada, quando, por coincidência, Edgar Navarro começou a filmar seu segundo longa – só vi essa semana a entrevista dele a João Carlos Sampaio, do A Tarde.
O Homem que não Dormia tem em Igatu (município de Andaraí), na Chapada Diamantina, a locação para a maioria das cenas. Mas, sem ver nada até agora, o melhor para mim já são os personagens. Nas palavras de Navarro: “são tipos bem diferentes: um padre, a mulher de um coronel, um pobre com retardo mental, uma mulher simples e de vida sexual liberta e um louco. Todos eles sonham com uma espécie de alma penada, um rico barão que morreu protegendo a sua botija de ouro”. Para completar, ele próprio (quem já viu sabe que figura é) vai interpretar o rico barão. Coisa válida vem por aí.

Qualquer resumo é pouco
Ainda não vi muitos dos filmes que concorreram à Palma de Ouro em Cannes ano passado, mas Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, definitivamente, é digno dela.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Louca Paixão (1973), de Paul Verhoeven
* Dias de Loucura (1990), de Wong Kar-Wai
* Escola de Rock (2003), de Richard Linklater
* A Fonte da Donzela (1960), de Ingmar Bergman
* Aniversário Macabro (1972), de Wes Craven
* A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola
* Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet (cinema)
* Gran Torino (2008), de Clint Eastwood (cinema)


Imagens em: http://www.thegrantorino.com/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

sábado, 21 de março de 2009

Eu Me Lembro*



(Na segunda metade do ano passado, acho que ainda antes de publicar o primeiro texto da 70mm, o diretor baiano Edgard Navarro veio lançar no Centro de Cultura daqui o seu primeiro longa-metragem, Eu Me Lembro. Filme e realizador simpáticos, além de genuinamente baianos, aumentaram minha vontade de rabiscar sobre ambos, pelo simples exercício de escrever mesmo. Ainda sem poder ir ao cinema, e sem publicar o texto na época, aí vai ele).

Eu Me Lembro (idem, Brasil, 2006), de Edgard Navarro, é uma coisa pra ser vista, revista e sempre citada, até pela pouquíssima circulação que teve. Obra semi (ou quase totalmente) auto-biográfica, carrega uma honestidade que, mesmo com algum excesso e perda de rumo, funciona como uma bela divagação poética sobre o próprio passado.

Pra ficar claro a quem se impressionar com o debutar de Navarro, é bom lembrar que ele chega ao seu primeiro longa já com 56 anos, mas um currículo respeitável de curtas-metragens nas décadas de 70 e 80. Brecou sua produção em 1989, quando dirigiu aquele tido como seu melhor resultado até então: o média-metragem Superoutro. Depois dali Navarro demorou quase 20 anos para voltar à ativa de fato, em 2006. Embora todo esse período possa fazer qualquer um perder o tato com a câmera, Eu Me Lembro não demonstra nenhum sinal alarmante de falta de familiaridade entre diretor, seu instrumento, tema e atores.

Dividido em duas partes, Navarro “se narra” através de Guiga (inspirado no próprio diretor, mas, de acordo com ele próprio, com toques criados e de conhecidos de sua infância), primeiro como menino, depois como adulto. As cenas de Guiga criança mostram parte do instinto iconoclasta do diretor, que filma fantasias de um menino que, entre outras coisas naturais, começa a descobrir que o pinto e a mão podem ter mais funções do que papai e mamãe disseram. Navarro explora também a normalidade de, como criança, querer saber sobre muita coisa que nem alguns adultos têm opinião própria e/ou relevante, como religião e política. Toda essa parte fascina não só pelo tom pessoal, como também pela universalidade de questões apresentadas. Com ironia, humor ou simples curiosidade, coisas sempre válidas.

Já o Guiga adulto entra em contato com indagações diferentes. Ele já descobriu novas funções para o pinto e as mãos, mas também para a cabeça e a boca. Entra em contato com gente ligada a toda atmosfera nostálgica da época retratada, em cenas interessantes, embora muita gente pareça uma (quase sempre irritante) caricatura (com boa vontade, aqui vista como um arquétipo aceitável): “o intelectual”, “o revolucionário”, “os hippies drogados”, e por aí vai.

É a partir daí que o filme começa a se perder numa divagação talvez supérflua que, paradoxalmente, é também fascinante. A questão psicodélica-surreal passa como um longo momento de coisas já filmadas e vistas em outros tantos (bons) filmes sobre a época, e acabam funcionando como um genérico (para não usar termo pior) numa obra que transborda autoralidade. Nesse momento, tem-se a impressão de que Navarro ficou tão apaixonado pela própria história que se perdeu em meio à idéia de filmar a psicodelia e o seu passado, que conflitaram com o finalizar do filme, até ali muito mais único.

A narração que aparece em algumas partes do filme também é curiosa. Às vezes brilhante e intimista (complementando a imagem sem ser descartável), em outros momentos ela foge do clima ao assumir um tom excessivamente literário, dissonante de uma obra que transborda uma espécie de poesia naturalista.

Por outro lado, essa poesia exala uma paixão que é absolutamente maravilhosa. São belas as referências às coisas da época, da Bahia a Pink Floyd, passando por 2001 – Uma odisséia no Espaço (1968), Hair (1979) e Frederico Fellini como um todo – Amacord (1973), aliás, é provavelmente a maior influência para o filme de Navarro.

Mesmo que com um possível deslize provocado talvez por uma paixão quase cega à época revisitada, pode-se dizer que Eu Me Lembro funciona como uma honesta declaração de amor ao passado. Como muitas outras (até melhores), mas talvez como a mais expressiva da e para a Bahia nesse tempo recente. Da curiosidade pura e infantil até o contato com a vida como ela foi e é, passando pelo inegável amor ao cinema.

Filme: Eu Me Lembro (idem, Brasil, 2006)
Direção: Edgard Navarro
Elenco: Lucas Valadares, Fernando Neves, Arly Arnaud, Valderez Freitas Teixeira.


8mm
Salvador
Continuando em Salvador, nossa capital recebe desde anteontem (19) o V Panorama Internacional Coisa de Cinema, que vai até o dia 26, quinta-feira. A melhor notícia (aparentemente e em teoria) é o que diz o site do evento: http://www.coisadecinema.com.br/Hotsite/. “Se, em um primeiro momento, o Panorama colocará o cinema no centro das atenções e da cidade, no final o festival irá circular em cidades do interior da Bahia, levando o melhor do cinema brasileiro e mundial”. Que assim seja.

49
Seguindo na onda patriótica (mas nunca bairrista, por favor), que começou semana passada com Glauber e passou por Navarro e Salvador, nesse sábado (21) Ayrton Senna completaria 49 anos. Muita gente que ama cinema considera esporte somente as atividades físicas pelos atores, os únicos atletas do mundo, que não precisa de outros. Mas, indo nessa contramão, e reiterando um óbvio ululante, Senna é desses ídolos irretocáveis que, como exceção que foi, tem perdoadas todas as possíveis besteiras que tenha feito na vida. Gênio brasileiro – como poucos. Sempre bom lembrar.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Do Outro Lado da Lei (2002), de Pablo Trapero
* Amor Só de Mãe (2003), de Dennison Ramalho (curta)
* Vidas Sem Rumo (1983), de Francis Ford Coppola
* O Selvagem da Motocicleta (1983), de Francis Ford Coppola
* As Canções de Amor (2007), de Christophe Honoré
* Boogie Nights (1997), de Paul Thomas Anderson
* À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), de José Mojica Marins
* Beleza Roubada (1996), de Bernardo Bertolucci
* Menina Santa (2004), de Lucrecia Martel
* Edifício Máster (2002), de Eduardo Coutinho

Imagens em: http://www.adorocinema.com.br/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

sábado, 14 de março de 2009

John Alonzo: O Homem que Fotografou Chinatown*



Filme, personagem e homenagem

John Alonzo: O Homem que Fotografou Chinatown, (The Man Who Shot Chinatown: The Life and Work of John A. Alonzo, ALE, 2007), de Alex Schill, pode suscitar longos e interessantes debates numa mesa de bar – apesar de não somente aí, com boa vontade. O porém é que esses debates, contudo, não são reflexos de questões levantadas pelo filme, mas sim de pontos esquecidos ou negligenciados – quando não corpos estranhos.

Como o título indica, o documentário trata da vida e obra de John Alonzo, “que fotografou Chinatown”, de Roman Polanski. O interessante é que o próprio nome original já coloca o personagem abaixo de um filme, como se o fotógrafo só existisse graças àquela obra específica que filmou – mesmo que ele tenha sido mais que isso.

Desde o início, O Homem que Fotografou Chinatown investe naturalmente em muito do que Alonzo fez, na e pela fotografia de cinema, mas também em sua vida pessoal, num recorte que nunca fica muito claro, deixando a impressão de que se queria abordar tudo na vida dele, do trabalho como zelador à crise no casamento. Em meio a essas abordagens e a essa falta de definição sobre o que falar e não falar, entra uma questão aberta quando se comenta Chinatown e que é ignorada no resto do filme: até que ponto o mérito das imagens mostradas são do fotógrafo? Qual o conhecimento de câmera e iluminação do diretor? Qual a contribuição teórica e prática de ambos para o resultado final?

Não se trata aqui de responder essas questões no documentário, pois seria necessário reunir toda a equipe do filme e tentar fazer com que todos eles se lembrassem do percentual de contribuição de cada um para cada cena. Ou seja, além de mexer com a sempre fantasiosa memória, muita gente teria que ser ressuscitada. Sendo isso impossível, soa oportunista entregar (extra) oficialmente o mérito do que se vê na tela ao personagem do filme.

O curioso é que esse aparente oportunismo se torna irônico quando sabemos (ou descobrimos) que Alonzo não foi a primeira opção para Chinatown e, como o próprio filme deixa claro, seu trabalho criativo foi limitado um bocado por Polanski. O filme parece dizer: “Olha esse trabalho de Alonzo, que bonito... olha o de cá, bom também... e esse outro, que beleza. Ah, mas o de cá é outra maravilha, como era o bom esse rapaz... e o daqui, olha o daqui. Tá vendo? É por esse que ele é mais conhecido... Mas, olha, aqui ele não fez quase nada”.

Lógico que Alonzo teve importância e o filme mostra parte dela, com acervo de imagens e de entrevistas razoável, além de parte de depoimentos do próprio Alonzo. “Eu quero ser o melhor diretor de fotografia de Hollywood em muito tempo”, chegou a dizer. Bom ele foi (ainda trabalhou, entre outros, com Brian de Palma em Scarface), veio com novas idéias e mudou um pouco o jeito de se filmar em Hollywood – e o filme mostra muito disso, no seu ponto mais alto.

Por outro lado, em meio a esse legado técnico-inventivo, o filme perde um tempo completamente desnecessário para se falar sobre a família de Alonzo e suas filhas, com as quais ele não tinha boa relação – se separou desde cedo e morreu sem se reconciliar com duas de três delas. Vemos parênteses grandes para se falar sobre o assunto e a vida pessoal dele, no que soa como um encarte da revista Caras no meio de um protótipo de Cahiers du Cinéma.

O problema de recorte e um certo desleixo para manter uma idéia coerente com a ligação entre mérito, talento, arte e coletividade parecem ser os maiores reveses aqui – não tenho pretensão nenhuma em fazer essa ligação. Mesmo que percebamos algum material interessante (com uma naturalmente não explicada falta de entrevistados que poderiam acrescentar mais – o que é ligado diretamente à falta de recorte definido), o resultado não está à altura do personagem, que tanto fez pelo que foi utilizado para se falar sobre ele. O que poderia ser um cruzamento de homenagem com metalinguagem (ou outra coisa diferente, desde que definida e assumida) se transformou num trabalho que não chega perto do potencial. Uma pena.

Ps: Retrocesso na voz, ida ao cinema vetada. Até queria ver Operação Valquíria, mas...

Filme: John Alonzo: O Homem que Fotografou Chinatown, (The Man Who Shot Chinatown: The Life and Work of John A. Alonzo, ALE, 2007)
Direção: Alex Schill
Elenco: John A. Alonzo, Roger Ebert, Richard Dreyfuss, William Friedkin.

8mm
Se Eu Fosse um Grilo Feliz
O site FilmeB divulgou na terça-feira (10) as maiores bilheterias nacionais do ano. O Menino da Porteira (com o cantor Daniel), de Jeremias Moreira Filho, era o terceiro, com R$ 128.090,00; a animação Grilo Feliz 2, de Walbercy Ribas, o segundo, com R$ 197.119,00; e Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho, de outro planeta: R$ 5.479.985,00. Ou seja, seriam necessários mais de 27 Grilos Felizes (sic) pra se chegar a Se Eu Fosse Você 2. Haja indústria, alegria...

Fazem falta
Sábado passado (7), dia da publicação da coluna – seguinte ao que terminei de escrevê-la –, foi o décimo aniversário da morte de Stanley Kubrick. É difícil falar algo não dito sobre ele, mas, pelo menos pra mim, depois de assistir a um filme de Kubrick (coisa que pela primeira vez não faço há meses, veja só) sempre fica a pergunta: como alguém tem a audácia de fazer cinema depois do que esse cara já fez?
Nesse sábado (14), exatamente uma semana depois, Glauber Rocha completaria 70 anos. Pessoalmente, embora goste especialmente (mas não só) de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, nada do que ele fez (e que eu já tenha visto) me atrai desesperadamente, e muito do que ele defendia, e como defendia, me incomoda. Mas não dá pra deixar de lembrar de Glauber, e de como ele deve ter pesadelos no túmulo, quando vemos Se Eu Fosse Você 2 arrecadando como 27 grilos felizes.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* M – O Vampiro de Dusseldorf (1931), de Fritz Lang
* Cleópatra (2007), de Júlio Bressane
* Sem Fim (1985), de Krzysztof Kieslowski
* Barton Fink (1991), de Joel (e Ethan) Coen
* Os Bons Companheiros (1990), de Martin Scorsese
* Instinto Selvagem (1992), de Paul Verhoeven
* John Alonzo: O Homem que Fotografou Chinatown (2007), de Alex Schill

Imagens em: http://www.guardian.co.uk/ e http://www.voltairenet.org/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

sábado, 7 de março de 2009

Leonera*



Da delicadeza à natural falta de

Leonera (idem, Argentina/Coréia do Sul/Brasil, 2008), de Pablo Trapero, é um dos exemplos mais claros de como empatia ou antipatia (ou a falta delas), apesar de presentes, podem se tornar secundárias se comparados ao êxito de se gerar aproximação estritamente humana do mundo que cerca um personagem. Mesmo quando o investimento inicial na construção dessa atmosfera própria toma um rumo diferente, através do qual o personagem assume o filme para si e o leva para um final talvez simplório.

Antes, contudo, Leonera começa com imagens que demoram a dizer o que significam, até um assassinato que não percebemos exatamente como aconteceu. Esse crime, que envolve versões distorcidas pelos suspeitos, termina colocando na cadeia Ramiro (Rodrigo Santoro, que não compromete) e Julia (interpretada por Martina Gusman).

Desde então já sentimos uma quantidade absurda de organicidade presente, não só em Julia, sobre quem é o filme, como no ambiente. O presídio transpira enquanto ela inspira, tudo é humano, tem vida. A atuação de Gusman, aliás, é no mínimo do mínimo corajosa. Ela começa visualmente mais atrativa (apesar de abatida), passa para uma grávida sem travesseiro – com um barrigão de verdade –, e chega a momentos em que o ar da prisão parece oxidar toda sua fisionomia.

No período que passa na cadeia, Julia tem que lidar com uma guarda “do mal”, mas que parece até de verdade (existem pessoas de verdade que são caricatas de algum jeito, ora) quando nos defrontamos com uma colega de mesmo função mas que se mostra mais compreensiva. Esse caráter humano, pelo bem e pelo mal, sem soar pretensioso ao querer sintomatizar ou responder demais as coisas, carrega bem Leonera.

Esse poder que Trapero tem de fazer seus personagens se expressarem não é novo, e é muito bem notado no delicioso Família Rodante (2004), por exemplo. Assim como ali, apesar de em tons bem diferentes, aqui seus personagens não agem simplesmente, mas vivem de acordo com as circunstâncias, sem que essas soem colocadas para simplesmente provocar a reação obtida, e sem que as pessoas se mostrem passivas. Em Leonera, esse jeito Trapero de escrever/dirigir se mostra claro com Julia (e tudo o que a rodeia), que demonstra uma naturalidade bem vinda em todas as atitudes tomadas, mesmo com algumas potencialmente controversas, mescladas com outras imagináveis e compreensíveis para um mãe de um filho pequeno.

Em meio a esses acontecimentos que fluem com muita lubrificação, alguns anos se passam e chega o dia em que Julia sai da cadeia – não para sempre, fica claro. Acompanhamos então sem cortes o percurso que ela faz dentro da prisão, cujas marcas parecem pulsar junta e naturalmente com ela. O ponto é que, embora essa fluidez esteja presente outra vez aqui, talvez o pecado do filme seja esse caminho bem trilhado para um final que fecha bem o título e a idéia, mas que pelo menos pra mim soa decepcionante.

Isso porque Leonera pode ser traduzido como lugar onde ficam as leoas, ou mais especificamente aqui, como o local onde ficam as detentas com filhos. E para um filme que investia tanto na construção e reconstrução de um ambiente e de uma situação tão bem cuidadas, o fim remete a uma idéia melodramática que soa mecânica e não bem-vinda para tudo que vimos tão brilhantemente ilustrado até ali.

Relembrar Leonera depois de se ter chegado a esse término o torna quase previsível, embora esse “problema” – que a princípio não é necessariamente um problema – seja claramente minimizado pelos méritos do filme, que não são poucos. Força ele tem.

Ps: Escrevi o texto mais de duas semanas depois de ter visto o filme, o que não é o ideal, eu sei. Mas o problema é que recebi a visita do mosquito maldito e, bem, muito mais até do que sexo, dengue = cama. E como o cinema não vem até Maomé, Maomé vai até à memória.

Ps2: Muito do que havia anotado (no PC) sobre Leonera se perdeu quando decidi escrever sobre Sim, Senhor na semana passada – na retrasada não houve texto pela mudança do jornal. Nesse tempo, perdi muita coisa. No dia não gostei tanto do filme, como o texto pode sugerir. Mas hoje, em minha cabeça, ele é mais ou menos o que está aí.

Filme: Leonera (idem, Argentina/Coréia do Sul/Brasil, 2008)
Direção: Pablo Trapero
Elenco: Martina Gusman, Elli Medeiros, Laura García, Rodrigo Santoro.


8mm
Argentina

Acho uma bobagem torcer contra a Argentina no futebol, porque realmente gosto de futebol. E acho uma besteira maior ainda quando pessoa torce contra o cinema dos vizinhos ou se irrita porque a safra de cineastas de lá é melhor do que a daqui – há controvérsias, mas concordo. Enquanto bem feito e enquanto cinema, qual o problema de ser argentino, sueco, romeno ou extraterreno? E de se assumir isso?

Brasil
Sam Dunn é um músico e antropólogo que sabe o que faz e do que fala. Depois de dirigir Metal – Uma Jornada pelo Mundo do Heavy Metal (2005), a história audiovisual do gênero, e Global Metal (2008) – que não vi, ele dirige Iron Maiden: Flight 666, que acompanha a turnê do Iron em 2008. O documentário tem estréia mundial marcada para 21 de abril.
Produção americana, dirigida por um canadense (co-dirigido por Scot McFadyen), sobre uma banda inglesa, o filme tem pré-estréia mundial marcada para o próximo sábado (14), veja só, no Rio de Janeiro. A sessão – que acontece antes do show da banda (na praça da Apoteose) – está marcada para às 14 horas no Cine Odeon, que torço para estar com todos os canais de áudio impecáveis. O ingresso, compreensivelmente salgado, custa R$ 80 – R$ 40 a meia.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* As Idades de Lulu (1990), de Bigas Luna
* Família Rodante (2004), de Pablo Trapero
* O Homem que Amava as Mulheres (1977), de François Truffaut
* Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos
* Scoop – O Grande Furo (2006), de Woody Allen
* O Selvagem (1953), Laslo Benedek
* Bonequinha de Luxo (1961), de Blake Edwards
* Gotas d’Água Sobre Pedras Escaldantes (2000), de François Ozon
* Jamón, Jamón (1992), de Bigas Luna
* Amantes do Círculo Polar (1998), de Julio Medem

Imagens em: http://www.adorocinema.com.br/ e http://www.cinemaemcena.com.br/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.