segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Saudade sueca*

- O diretor de um circo de pulgas deixa que seus artistas lhe chupem o sangue.
- Eu não gosto de pulgas.
- Nem eu.
- E por que você disse isso?
- Não fui eu, foi Bergman.
- E por que ele disse isso?
- Não sei. Quando tentei falar com ele, o celular tava desligado.
- Mas e o que ele quis dizer com isso?
- Ele quis dizer o que ele disse, ora – e se não quis, dá no mesmo, porque leio o que ele disse, não o que ele quis dizer.
- Não precisava ser indelicado.
- Você pediu... Mas, pra falar a verdade eu tô retado também...
- Why?
- Ontem, eu disse ontem, meu editor falou que queria o texto pra anteontem. Isso não é legal.
- Isso, na verdade, é um sinal...
- De quê?
- De que seu editor não quer publicar seu texto.
- Desconfio disso.
- Desconfia? A ingenuidade é uma bênção...
- Benção é ele ter um colunista como eu.
- Que, numa coluna de cinema, fala mais dele do que de filmes?
- Não, hoje tô falando de Bergman, por exemplo. Até porque ele, meu editor, deve achar que, nos textos, sou a soma das velocidades de Bergman e Fassbinder.
- Já seria ótimo se você fosse a metade da substração do talento de um pelo outro.
- Quem sobre quem?
- Eles podem co-existir tranquilamente. Graças a Deus, aos Lumière, ou, sei lá, aos golfinhos do Parque Costa Azul, o cinema não é uma competição.
- Pois é, mas o assunto hoje é Bergman, porque não me lembro de já ter falado dele por aqui. E porque já escolhi a citação das pulgas pra poder tentar dar início ao texto menos elaborado que já escrevi.
- Nossa, você nem terminou e já acha que ele é o pior.
- Não necessariamente o pior, mas o menos pensado. Isso me entristece.
- Você tá como Elizabeth Vogler em Persona?
- Eu tô com a complexidade dos sentimentos de quase todo personagem de Bergman. Com a diferença de que ainda tenho a preocupação de ter que pagar minhas contas.
- É impressão minha ou você quis diminuir os personagens de Bergman?
- Eu não disse isso.
- Mas deu pra interpretar assim.
- O problema não é meu, nem de Bergman. Muito menos de Alma. Falando nisso, quero rever Persona.
- Vá lá.
- Ainda não. O texto tá curto.
- Não se esqueça, seu editor pediu o texto pra anteontem.
- É verdade...
- Pois é, sua desculpa é aceitável e sua vontade é admirável, porque Persona é um filmaço.
- Obrigado...
- Vá logo, vá.
- É, vou partir mesmo.
- Beijo...
- Beijo...
Ele deixa o computador.

Rigor
Não estou entre os maiores entusiastas de Ingmar Bergman, mas Persona (1966) – assim como Elizaberth Vogler e Alma, interpretadas por Liv Ullmann e Bibi Andersson – é um filme absurdo. Que fica ainda mais absurdo quando vemos Bergman dizer que a improvisação, ali, é praticamente nula, que o texto “foi rigorosamente concebido”. Um monstro esse Ingmar.

Ah, Suécia...
Falando em Suécia, bom lembrar de outra maravilha escandinava, o Deixa Ela Entrar (2008), de Tomas Alfredson. Uma coisa dessas que faz você acreditar como os filmes de gênero precisam continuar a existir – e a serem reinventados. Vampiros, terror, morte e sangue, tudo bem protocolar, transformado em um filme de amor – mas não só – bem pessoal.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição de dezembro (também impressa) do Jornal Direitos - www.jornaldireitos.com.br.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Pausa

Natal e réveillon, infelizmente, sem o tempo costumeiro para filmes – o que significa, também, impossibilidade de escrever sobre eles. Próximo texto de verdade chega no dia 9. Até lá.

Filmes da semana:
1. Adeus, Dragon Inn (2003), de Tsai Ming-Liang (**)
2. Crash – Estranhos Prazeres (1996), de David Cronenberg (***1/2)
3. Polícia, Adjetivo (2009), de Corneliu Porumbiu (***1/2) (Cinema da UFBA)

sábado, 19 de dezembro de 2009

Avatar*



O “revolucionário” bem comportado


Com Titanic (1997), James Cameron se consolidou de vez como um dos poucos diretores de blockbusters cuja carreira ficou marcada por obras que conciliaram verbas estratosféricas com um mínimo de assinatura e respeito à inteligência do espectador. Em Avatar (idem – 2009, EUA/ Reino Unido), seu primeiro filme em 12 anos, ele volta a obter um resultado único na sua megalomania, mas que também traz irritante sabor genérico.

Avatar pode ser dividido em dois sub-filmes – muito mais que duas partes. O primeiro termina com o pensamento, iniciado lá atrás, de que “mais cedo ou mais tarde, todos nós temos que acordar”. O que a princípio poderia soar como uma filosofia barata típica de blockbusters, ali tem um caráter que consegue ser onírico e crítico. Trata-se de uma realidade paralela num mundo surreal, convincente e jamais visto (e sequer imaginado para a maioria), com a impossibilidade de um final feliz, em um exemplar da beleza na melancolia.

O porém é que esse fim não pode existir num filme cujo orçamento permanece um mistério de vários dígitos – os valores encontrados na Internet vão de 230 (www.imdb.com) a 500 milhões de dólares. No segundo bloco, existe tudo de protocolar, de curtas frases de efeito pós-silêncio a emoções e triunfos sublinhados – tentando ser mais do que de fato são. Incomoda ainda mais o pudor de Cameron para resolver algumas cenas de ação, cuja sintonia com o tom hiperbólico do filme não as avaliza, mas sim reforça a gordura símbolo da obsessão com tamanho.

Até o caráter assumidamente pró-natureza, presente em todo o filme, começa a perder potência com o tempo. Se no começo ele prezava pela sugestão, e dava a cada um a oportunidade de fazer (ou não) a sua própria metáfora, depois ele tende ao didatismo. Não há dúvidas de que Cameron conseguiu fazer um manifesto anti-reacionarismo, mas ele reforçou tanto as caricaturas (de militares/predadores malvados) que elas se tornaram mais marcantes que o poder do gênero; fascinante em vários aspectos – que não valem a pena ser citados, e sim vistos.

É verdade, também, que as concessões sempre estiveram presentes nos filmes de Cameron, mas elas pareciam apenas parte da mentalidade do cinema “penso descaradamente no público, mas tenho voz própria e sou bom no que faço” – que tem em Alfred Hitchcock e Steven Spielberg talvez seus dois melhores exemplos até hoje. Aqui, no entanto, ele permanece competente, o roteiro é bem redondo (tudo “se encaixa”), mas sua voz parece abafada pela expectativa da massa, o nada criativo.

Diferente do que ele conseguiu no próprio Titanic (1997) e em O Exterminador do Futuro 2 (1991), em Avatar ele não torna o caminho para o óbvio tão atraente. Terminada a sessão, o que fica é “somente” o nunca antes visto, e a extravagância (da certeza) desse nunca antes visto – com sensação de déjà vu (em outros) maior do que o esperado dentro dos padrões de seu diretor.

Filme: Avatar (Avatar – 2009, EUA/ Reino Unido)
Direção: James Cameron
Elenco: Sam Worthington, Zoe Saldana, Sigourney Weaver
Duração: 162 minutos

8mm
O Kubrick dos blockbusters?
Brevemente digerido o filme, aumenta a certeza de que Cameron deve sentir aqui situação semelhante à de Kubrick com Laranja Mecânica (1971). Um diretor já respeitado com pelo menos três obras assaz relevantes para a época, mas que, num misto de megalomania e perfeccionismo desmedidos, permanece em busca de uma obra-prima ainda mais poderosa que a anterior.
Uma das diferenças, para não falar de talento, é que Kubrick tinha uma visão de cinema muito menos hollywoodiana (“desagradável” até), o que torna seu feito ainda mais notável – fazer filmes cuja autoralidade é tão marcante quanto as cifras dos gastos. Já Cameron, mesmo com um ideal artístico que assenta para quem o banca (ou até por isso), aqui se perde entre sua louvável capacidade de chacoalhar a indústria e os milhões de dólares que tendem a podá-lo; ou a seduzi-lo a uma auto-censura. O que não deixa de ser uma pena – para um cineasta especial.

Filmes da semana:
1. Um Só Pecado (1964), de François Truffaut (**1/2)
2. Avatar (2009), de James Cameron (Multiplex Iguatemi – cabine de imprensa) (***)
3. É Proibido Fumar (2009), de Anna Mullayert (Cine Vivo) (***)
4. Palhaços (1970), de Federico Fellini (***)
5. Diário de Sintra (2008), de Paula Gaitán (Espaço Unibanco) (*1/2)
6. O Deserto dos Tártaros (1976), de Valerio Zurlini (**1/2)
7. A Bela Junie (2008), de Christophe Honoré (***1/2)

* Coluna 70mm também publicada no www.pimentanamuqueca.com.br.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Abraços Partidos*



Sobre o viver dos olhos

Em Má Educação (2004), apesar de um discreto conflito entre (excesso de?) esmero e (certa falta de) fluidez, Pedro Almodóvar atingiu uma quase inacreditável combinação, límpida e convincente, entre o demonstrar sua paixão pelo ofício e o admirável caráter declaradamente auto-biográfico de sua obra. Cinco anos depois, aos 60 de idade, ele lança Abraços Partidos (Los abrazos rotos – Espanha, 2009), irmão daquele de 2004 e com um fascínio forte o suficiente para suplantar a marcha lenta que o mantém em boa parte do tempo.

A melhor personagem do filme é, sem dúvida, Penélope Cruz – que foi de uma potencial enganação a uma atriz cujo potencial ainda não nos apresentou seu limite. Lena é a imagem pura e auto-suficiente, é a vontade de existir no cinema, de fazer o cinema existir, e que representa não só ela como o próprio filme dentro do filme que temos aqui. Não menos bela é a cena do abraçar a imagem projetada, já filmada entre outros por Godard, emblemática de uma paixão que, no restante do filme, é puro Almodóvar.

Mais do que a auto-citação, ele volta a usar revelações e reviravoltas, comuns na sua escrita folhetinesca, que parecem (a maioria delas) menos relevantes e surpreendentes do que já foram em filmes anteriores. Bom dizer, contudo, que o que pode ser analisado como um pouco antecipável e sem um encaixe perfeito, pode ser visto também (prefiro olhar assim) como um ponto a favor da capacidade de Almodóvar trazer ardor e acaso com a naturalidade de quem sabe tratar com esse tipo de narração e essa mescla de gêneros. Sua assinatura é forte e bonita o suficiente para tornar uma suposta previsibilidade em marca inconteste – que pode incomodar a uns e maximizar o efeito da obra em outros.

O tom novelesco, por exemplo, se no começo não traz o mesmo impacto de muita coisa já feita por ele, acaba por premiar o até então impossível, em – aí sim – uma reviravolta digna de um apaixonado absurdamente talentoso. E capaz de finalizar um filme com uma frase explícita que, se na mão de outro poderia parecer forçada, nas dele parece potencializar ainda mais o nó na garganta de quem sente um mínimo de afeição por esse meio que é o cinema.

É verdade que o amor em comum pela arte talvez contribua para um caráter mais condescendente de quem o analisa, graças à carga emocional do fim do filme, mas também é verdade que não faltam obras que tentam transbordar cinefilia quando, de fato, derramam citações sem nada de genuíno como resultado à parte da referência. Diferente de Almodóvar, que, embora não chegue aqui à sua criação mais bem acabada, é provável que tenha nela a mais apaixonada e cativante.

Filme: Abraços Partidos (Los abrazos rotos – Espanha, 2009)
Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Penélope Cruz, Lluís Omar, Blanca Portillo, José Luiz Gómez
Duração: 127 minutos

Filmes da semana:
1. Abraços Partidos (2009), de Pedro Almodóvar (Cine Vivo) (****)
2. O Poderoso Chefão Parte II (1974), de Francis Ford Coppola (****1/2)
3. Atividade Paranormal (2007), de Oren Peli (UCI Aeroclube) (***1/2)
4. Um Sonho Americano (1993), de Emir Kusturica (**1/2)
5. Barravento (1962), de Glauber Rocha (***)
6. Penalty (2001), de Adler “Kibe” Paz (Walter da Silveira) (curta) (**)
7. Rádio Gogó (1999), de José Araripe Jr. (Walter da Silveira) (curta) (***)
8. Viver a Vida (1962), de Jean-Luc Godard (***)
9. Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), de Pedro Almodóvar (***)

* Coluna 70mm também publicada no www.pimentanamuqueca.com.br.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Diário dos Mortos*



O atualizar da paixão crítica


Diário dos Mortos (Diary of the Dead – EUA, 2007), de George A. Romero, é um filme reflexo não só das obsessões como também, e principalmente, do talento de seu diretor para o gênero. É uma atualização de um cineasta que parece capaz de se reinventar com a fluência de um mestre, mesmo dentro de um nicho bem específico – mais do que outro filme de terror, ele volta visitar o terreno específico dos filmes de zumbis.

Percebemos desde o começo que a época é outra, e Romero sabe nos mostrar isso sem que o resultado soe (apenas) modista. O uso da câmera na mão é coerente com a ideia do filme (universitário) dentro do filme, e tem a naturalidade e o domínio de quem sabe usar um plano sequencia, sabe decupar uma cena e consegue dar ritmo ao filme; tendo, ainda, algo a dizer.

Esse “algo a dizer”, é bom falar, pouco ou nada tem de novo – especialmente se pensarmos em tudo que Romero fez desde A Noite dos Mortos Vivos (1968) –, mas a abordagem de mais do mesmo é qualquer coisa menos desinteressante. Não só pela diferenciação do jeito de filmar, que se aproxima de um “contemporâneo” sem parecer publicitário-enganador, como por alfinetadas roméricas presentes em quase toda cena.

Lógico que os filmes de Romero nunca foram ingênuos (longe disso), mas Diário dos Mortos talvez seja o resultado em que ele combine melhor crítica e cinismo. De um jeito que, entre um momento subliminar e outro explicíto, só poderia funcionar tão bem e de maneira tão pessoal num filme de gênero. O que Romero ainda sabe fazer como poucos.

Filme: Diário dos Mortos (Diary of the Dead – EUA, 2007)
Direção: George A. Romero
Elenco: Michelle Morgan, Joshua Close, Shawn Roberts, Tracy Thurman
Duração: 95 minutos

8mm
Virtuosismo?
Eu juro que pensei em escrever sobre O Solista (2009), mas o potencial desperdiçado pelo filme só não é maior do que a impressão de que Joe Wright, também diretor do ótimo Orgulho e Preconceito, parece ter perdido todo o tato para direção. O roteiro não é bom, ele se esforça em tornar tudo mais enfadonho, mas – o pra mim inexplicável – o filme não é exatamente horroroso; e talvez longe disso. Só me pareceu deveras insosso, e não consegui me imaginar escrevendo mais de um parágrafo sobre ele. Sensação confusa.

Filmes da semana:
1. Diário dos Mortos (2007), de George A. Romero (***1/2)
2. O Dinheiro (1983), de Robert Bresson (sala Walter da Silveira) (***)
3. O Solista (2009), de Joe Wright (Multiplex Iguatemi) (**)

Filmes do mês:
10. 500 Dias com Ela (2009), de Marc Webb (**1/2)
9. O Signo do Leão (1958), de Eric Rohmer (***)
8. O Dinheiro (1983), de Robert Bresson (***)
7. Pioneiros em Ingolstadt (1971), de Rainer Werner Fassbinder (***)
6. Domicílio Conjugal (1970), de François Truffaut (***1/2)
5. Casamento Silencioso (2008), de Horatiu Malaele (***1/2)
4. As Testemunhas (2007), de André Téchiné (***1/2)
3. Diário dos Mortos (2007), de George A. Romero (***1/2)
2. Deixa Ela Entrar (2008), de Tomas Alfredson (****)
1. Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino (****1/2)

* Coluna 70mm também publicada no www.pimentanamuqueca.com.br.