Bastardo, mas obediente
Divã, de José Alvarenga Jr. (Os Normais – o Filme; e quase toda série cômica da Globo), é um caso de filme cuja ambição mostrada na tela (e provavelmente não esperada) é responsável pelo que existe de melhor e de pior. O “produto” parece brigar sempre com o “filme”, numa luta que, pesados os males e os bens do padrão Globo Filmes, termina com um resultado talvez relativamente satisfatório para o segundo – que, é claro, ainda sai “derrotado”.
O começo é assustador, com um tom pastelão (nem pense em Ettore Scola), o já conhecido Rio de Janeiro perfeito da ficção científica, com até a trilha de Caetano Veloso aparentemente domesticada. Impossível não visualizar outra tentativa de se fazer uma comédia genérica americana – daquelas que você nunca lembra quem escreveu ou dirigiu; ou às vezes nem se viu –, o que, felizmente, não é bem o caso.
A história é de Mercedes (Lília Cabral, responsável por tornar plausível o às vezes inadmissível), casada e em crise de meia-idade, que conhece um cara mais novo e atraente. O investimento é não só no humor, mas também num certo existencialismo (que depois vira sentimentalismo) que, se por um lado leva o filme a assumir uma pretensão incapaz de alcançar, também é verdade que mostra bons momentos – graças principalmente a imagens que misturam o querer/sonhar com o poder/viver.
Apesar de não ser pecado imaginar uma versão feminina de Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, Divã deixa claro que preza, do início ao fim, pela falta de delicadeza. Ciente de que muito do seu humor vem do conceito e de piadas da idade média, Alvarenga se utiliza de um até curioso roteiro de Marcelo Saback (ator que escreve pela primeira vez para o cinema) para amarrar o espectador, antes de fazer cócegas nele – o que, graças também a algumas poucas frases inspiradas, funcionou comigo.
Em sintonia com essa mentalidade do humor, está o tratamento dado ao homem – como ser masculino. Gustavo (José Mayer, o mesmo de sempre) encarna o Homer Simpson brasileiro e em forma, que bebe e é incomodado pela mulher sempre “nas finais do campeonato brasileiro” – mesmo que o campeonato brasileiro não tenha finais. Se todos fossem estereotipados, haveria uma coerência, o que não existe, especialmente quando o filme quer agregar à comédia o que esta aqui não comporta, como em uma das mais estapafúrdias “reviravoltas” de um tempo recente do cinema.
Válido frisar ainda que não menos negativa é a às vezes absurda falta de lógica (com o álibi do riso) de determinadas situações, como numa conversa sobre masturbação e um elogio a uma pintura. E também do fato de, para se chamar o público e em busca de um manual de auto-ajuda para a meia-idade, se escalar dois dos maiores galãs globais (Cauã Reymond e Reynaldo Gianecchini não precisam atuar) para se envolver com Mercedes. Não soa bonito como poderia ser, pela diferença, mas sim falso e oportunista.
Outro ponto é o fato de o filme se debater entre os tempos medievais e a pós-modernidade. Se o humor é filho daquela primeira, o que tenta vir da última é uma suposta naturalidade dos personagens encararem situações mais comuns – pelo menos de se comentar – hoje do que na época da inquisição. Aqui tem mulher que xinga (com moderação), fuma maconha, se masturba e comenta a masturbação, além de um galã hétero que vai para uma boite gay, “onde rola as melhores baladas”. Se nem sempre existe a fluência necessária, e um pouco da mescla vem provavelmente da exigência de se atingir o maior público possível, bom ressaltar a “coragem” – mais uma vez, ponderados os padrões do que está por trás.
Divã termina ainda sem resolver outro dilema, ao não acreditar nem duvidar do poder de criar um mundo próprio com pessoas que existem somente ali no cinema, e ao nem conseguir falar de gente de carne e osso. Em meio a esse eterno flerte com os dois lados, ele acerta e erra, e de um jeito diferenciado comparado aos irmãos, na maioria gêmeos univitelinos. O que, se pode ser visto como um bom sinal de diferença por se tratar de um “bastardo”, não é suficiente – nem convincente – quando tirada essa relativização.
Filme: Divã (Brasil, 2009)
Direção: José Alvarenga Júnior
Elenco: Lília Cabral, José Mayer, Alexandra Richter.
Duração: 90 minutos
8mm
Regra de três
9,5 milhões de espectadores em menos de seis meses – é o público do cinema nacional este ano, maior que o de todo o ano passado – 9,1. A marca, que equivale a 19% do público total (49 mi), vale ser comemorada pela proporção, quase o dobro que nos últimos anos – algo pelos 10, 11%. O diretor presidente da Ancine, Manoel Rangel, disse que “só 20 países no mundo têm essa participação. E nenhum deles é latino-americano” – embora eu não tenha certeza se essa marca não é (ou foi no ano passado ou retrasado) ultrapassada pela Argentina e seu ótimo cinema local.
Agora, convenhamos, bom mesmo é a distribuição aqui. Dos 9,5 milhões, mais de seis foram apenas de Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho. O segundo lugar é de Divã, com 1,7 milhão. Ou seja, os menos de dois milhões restantes é dividido entre os outros 28 filmes nacionais lançados em 2009. Sim, 7,7 está por 2, assim como 1,8 está para 28. Ainda bem que vivemos no país da diversidade...
Ps: Vi a notícia no grupo de (e-mail) Roteiros Online, enviada por Ruy Jobim Neto e assinada por Roberta Pennafort. Não vi a matéria em outro canto.
Filmes da semana:
1. Filme Demência (1986), de Carlos Reichenbach
2. Hardcore (1979), de Paul Schrader
3. Banda à Parte (1964), de Jean-Luc Godard
4. O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte
5. Transformers (2007), de Michael Bay
6. Valentin (2002), de Alejandro Agresti
7. Divã (2009), de José Alvarenga Jr. (cinema)
8. Vida de Menina (2003), de Helena Solberg
9. Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz
Divã, de José Alvarenga Jr. (Os Normais – o Filme; e quase toda série cômica da Globo), é um caso de filme cuja ambição mostrada na tela (e provavelmente não esperada) é responsável pelo que existe de melhor e de pior. O “produto” parece brigar sempre com o “filme”, numa luta que, pesados os males e os bens do padrão Globo Filmes, termina com um resultado talvez relativamente satisfatório para o segundo – que, é claro, ainda sai “derrotado”.
O começo é assustador, com um tom pastelão (nem pense em Ettore Scola), o já conhecido Rio de Janeiro perfeito da ficção científica, com até a trilha de Caetano Veloso aparentemente domesticada. Impossível não visualizar outra tentativa de se fazer uma comédia genérica americana – daquelas que você nunca lembra quem escreveu ou dirigiu; ou às vezes nem se viu –, o que, felizmente, não é bem o caso.
A história é de Mercedes (Lília Cabral, responsável por tornar plausível o às vezes inadmissível), casada e em crise de meia-idade, que conhece um cara mais novo e atraente. O investimento é não só no humor, mas também num certo existencialismo (que depois vira sentimentalismo) que, se por um lado leva o filme a assumir uma pretensão incapaz de alcançar, também é verdade que mostra bons momentos – graças principalmente a imagens que misturam o querer/sonhar com o poder/viver.
Apesar de não ser pecado imaginar uma versão feminina de Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, Divã deixa claro que preza, do início ao fim, pela falta de delicadeza. Ciente de que muito do seu humor vem do conceito e de piadas da idade média, Alvarenga se utiliza de um até curioso roteiro de Marcelo Saback (ator que escreve pela primeira vez para o cinema) para amarrar o espectador, antes de fazer cócegas nele – o que, graças também a algumas poucas frases inspiradas, funcionou comigo.
Em sintonia com essa mentalidade do humor, está o tratamento dado ao homem – como ser masculino. Gustavo (José Mayer, o mesmo de sempre) encarna o Homer Simpson brasileiro e em forma, que bebe e é incomodado pela mulher sempre “nas finais do campeonato brasileiro” – mesmo que o campeonato brasileiro não tenha finais. Se todos fossem estereotipados, haveria uma coerência, o que não existe, especialmente quando o filme quer agregar à comédia o que esta aqui não comporta, como em uma das mais estapafúrdias “reviravoltas” de um tempo recente do cinema.
Válido frisar ainda que não menos negativa é a às vezes absurda falta de lógica (com o álibi do riso) de determinadas situações, como numa conversa sobre masturbação e um elogio a uma pintura. E também do fato de, para se chamar o público e em busca de um manual de auto-ajuda para a meia-idade, se escalar dois dos maiores galãs globais (Cauã Reymond e Reynaldo Gianecchini não precisam atuar) para se envolver com Mercedes. Não soa bonito como poderia ser, pela diferença, mas sim falso e oportunista.
Outro ponto é o fato de o filme se debater entre os tempos medievais e a pós-modernidade. Se o humor é filho daquela primeira, o que tenta vir da última é uma suposta naturalidade dos personagens encararem situações mais comuns – pelo menos de se comentar – hoje do que na época da inquisição. Aqui tem mulher que xinga (com moderação), fuma maconha, se masturba e comenta a masturbação, além de um galã hétero que vai para uma boite gay, “onde rola as melhores baladas”. Se nem sempre existe a fluência necessária, e um pouco da mescla vem provavelmente da exigência de se atingir o maior público possível, bom ressaltar a “coragem” – mais uma vez, ponderados os padrões do que está por trás.
Divã termina ainda sem resolver outro dilema, ao não acreditar nem duvidar do poder de criar um mundo próprio com pessoas que existem somente ali no cinema, e ao nem conseguir falar de gente de carne e osso. Em meio a esse eterno flerte com os dois lados, ele acerta e erra, e de um jeito diferenciado comparado aos irmãos, na maioria gêmeos univitelinos. O que, se pode ser visto como um bom sinal de diferença por se tratar de um “bastardo”, não é suficiente – nem convincente – quando tirada essa relativização.
Filme: Divã (Brasil, 2009)
Direção: José Alvarenga Júnior
Elenco: Lília Cabral, José Mayer, Alexandra Richter.
Duração: 90 minutos
8mm
Regra de três
9,5 milhões de espectadores em menos de seis meses – é o público do cinema nacional este ano, maior que o de todo o ano passado – 9,1. A marca, que equivale a 19% do público total (49 mi), vale ser comemorada pela proporção, quase o dobro que nos últimos anos – algo pelos 10, 11%. O diretor presidente da Ancine, Manoel Rangel, disse que “só 20 países no mundo têm essa participação. E nenhum deles é latino-americano” – embora eu não tenha certeza se essa marca não é (ou foi no ano passado ou retrasado) ultrapassada pela Argentina e seu ótimo cinema local.
Agora, convenhamos, bom mesmo é a distribuição aqui. Dos 9,5 milhões, mais de seis foram apenas de Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho. O segundo lugar é de Divã, com 1,7 milhão. Ou seja, os menos de dois milhões restantes é dividido entre os outros 28 filmes nacionais lançados em 2009. Sim, 7,7 está por 2, assim como 1,8 está para 28. Ainda bem que vivemos no país da diversidade...
Ps: Vi a notícia no grupo de (e-mail) Roteiros Online, enviada por Ruy Jobim Neto e assinada por Roberta Pennafort. Não vi a matéria em outro canto.
Filmes da semana:
1. Filme Demência (1986), de Carlos Reichenbach
2. Hardcore (1979), de Paul Schrader
3. Banda à Parte (1964), de Jean-Luc Godard
4. O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte
5. Transformers (2007), de Michael Bay
6. Valentin (2002), de Alejandro Agresti
7. Divã (2009), de José Alvarenga Jr. (cinema)
8. Vida de Menina (2003), de Helena Solberg
9. Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz
* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.