sábado, 27 de junho de 2009

Divã*



Bastardo, mas obediente

Divã, de José Alvarenga Jr. (Os Normais – o Filme; e quase toda série cômica da Globo), é um caso de filme cuja ambição mostrada na tela (e provavelmente não esperada) é responsável pelo que existe de melhor e de pior. O “produto” parece brigar sempre com o “filme”, numa luta que, pesados os males e os bens do padrão Globo Filmes, termina com um resultado talvez relativamente satisfatório para o segundo – que, é claro, ainda sai “derrotado”.

O começo é assustador, com um tom pastelão (nem pense em Ettore Scola), o já conhecido Rio de Janeiro perfeito da ficção científica, com até a trilha de Caetano Veloso aparentemente domesticada. Impossível não visualizar outra tentativa de se fazer uma comédia genérica americana – daquelas que você nunca lembra quem escreveu ou dirigiu; ou às vezes nem se viu –, o que, felizmente, não é bem o caso.

A história é de Mercedes (Lília Cabral, responsável por tornar plausível o às vezes inadmissível), casada e em crise de meia-idade, que conhece um cara mais novo e atraente. O investimento é não só no humor, mas também num certo existencialismo (que depois vira sentimentalismo) que, se por um lado leva o filme a assumir uma pretensão incapaz de alcançar, também é verdade que mostra bons momentos – graças principalmente a imagens que misturam o querer/sonhar com o poder/viver.

Apesar de não ser pecado imaginar uma versão feminina de Encontros e Desencontros (2003), de Sofia Coppola, Divã deixa claro que preza, do início ao fim, pela falta de delicadeza. Ciente de que muito do seu humor vem do conceito e de piadas da idade média, Alvarenga se utiliza de um até curioso roteiro de Marcelo Saback (ator que escreve pela primeira vez para o cinema) para amarrar o espectador, antes de fazer cócegas nele – o que, graças também a algumas poucas frases inspiradas, funcionou comigo.

Em sintonia com essa mentalidade do humor, está o tratamento dado ao homem – como ser masculino. Gustavo (José Mayer, o mesmo de sempre) encarna o Homer Simpson brasileiro e em forma, que bebe e é incomodado pela mulher sempre “nas finais do campeonato brasileiro” – mesmo que o campeonato brasileiro não tenha finais. Se todos fossem estereotipados, haveria uma coerência, o que não existe, especialmente quando o filme quer agregar à comédia o que esta aqui não comporta, como em uma das mais estapafúrdias “reviravoltas” de um tempo recente do cinema.

Válido frisar ainda que não menos negativa é a às vezes absurda falta de lógica (com o álibi do riso) de determinadas situações, como numa conversa sobre masturbação e um elogio a uma pintura. E também do fato de, para se chamar o público e em busca de um manual de auto-ajuda para a meia-idade, se escalar dois dos maiores galãs globais (Cauã Reymond e Reynaldo Gianecchini não precisam atuar) para se envolver com Mercedes. Não soa bonito como poderia ser, pela diferença, mas sim falso e oportunista.

Outro ponto é o fato de o filme se debater entre os tempos medievais e a pós-modernidade. Se o humor é filho daquela primeira, o que tenta vir da última é uma suposta naturalidade dos personagens encararem situações mais comuns – pelo menos de se comentar – hoje do que na época da inquisição. Aqui tem mulher que xinga (com moderação), fuma maconha, se masturba e comenta a masturbação, além de um galã hétero que vai para uma boite gay, “onde rola as melhores baladas”. Se nem sempre existe a fluência necessária, e um pouco da mescla vem provavelmente da exigência de se atingir o maior público possível, bom ressaltar a “coragem” – mais uma vez, ponderados os padrões do que está por trás.

Divã termina ainda sem resolver outro dilema, ao não acreditar nem duvidar do poder de criar um mundo próprio com pessoas que existem somente ali no cinema, e ao nem conseguir falar de gente de carne e osso. Em meio a esse eterno flerte com os dois lados, ele acerta e erra, e de um jeito diferenciado comparado aos irmãos, na maioria gêmeos univitelinos. O que, se pode ser visto como um bom sinal de diferença por se tratar de um “bastardo”, não é suficiente – nem convincente – quando tirada essa relativização.

Filme: Divã (Brasil, 2009)
Direção: José Alvarenga Júnior
Elenco: Lília Cabral, José Mayer, Alexandra Richter.
Duração: 90 minutos

8mm
Regra de três
9,5 milhões de espectadores em menos de seis meses – é o público do cinema nacional este ano, maior que o de todo o ano passado – 9,1. A marca, que equivale a 19% do público total (49 mi), vale ser comemorada pela proporção, quase o dobro que nos últimos anos – algo pelos 10, 11%. O diretor presidente da Ancine, Manoel Rangel, disse que “só 20 países no mundo têm essa participação. E nenhum deles é latino-americano” – embora eu não tenha certeza se essa marca não é (ou foi no ano passado ou retrasado) ultrapassada pela Argentina e seu ótimo cinema local.
Agora, convenhamos, bom mesmo é a distribuição aqui. Dos 9,5 milhões, mais de seis foram apenas de Se Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho. O segundo lugar é de Divã, com 1,7 milhão. Ou seja, os menos de dois milhões restantes é dividido entre os outros 28 filmes nacionais lançados em 2009. Sim, 7,7 está por 2, assim como 1,8 está para 28. Ainda bem que vivemos no país da diversidade...
Ps: Vi a notícia no grupo de (e-mail) Roteiros Online, enviada por Ruy Jobim Neto e assinada por Roberta Pennafort. Não vi a matéria em outro canto.

Filmes da semana:
1. Filme Demência (1986), de Carlos Reichenbach
2. Hardcore (1979), de Paul Schrader
3. Banda à Parte (1964), de Jean-Luc Godard
4. O Pagador de Promessas (1962), de Anselmo Duarte
5. Transformers (2007), de Michael Bay
6. Valentin (2002), de Alejandro Agresti
7. Divã (2009), de José Alvarenga Jr. (cinema)
8. Vida de Menina (2003), de Helena Solberg
9. Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 20 de junho de 2009

O Exterminador do Futuro: a Salvação*



Insegurança

O Exterminador do Futuro: a Salvação (Terminator Salvation – EUA/ Alemanha/ Reino Unido/ Itália, 2009), de McG, me passou uma estranha sensação de uma insegurança sem fim. Em meio a obrigações a serem seguidas como produto e como franquia, ele se engessa de tal maneira que, quando se livra dessas amarras, sua liberdade não soa bem vinda.

O filme se passa em 2018 (próximo demais para um mundo tão diferente), quando impera o medo da Skynet e de seus robôs, desafiados em óbvia inferioridade de condições pela “resistência”. A ideia da trama, tão sublinhada durante as quase duas horas de projeção, carrega uma ingenuidade incompatível com um filme como esse – mais do que nos outros três. Aqui vemos um claro expoente da produção em série, ligado a um maquinário inimaginável para a maioria até dos que o assistem, e que ainda assim fala sobre e defende a resistência contra as máquinas – no mínimo curioso.

O próprio McG também passa a impressão de às vezes sair de sua órbita – que nunca foi tão bela nem assustadoramente delineada (o que não precisa ser), não faz mal lembrar. Se em As Panteras e As Panteras Detonando investia em momentos que com boa vontade mesclavam cenas inspiradas com decisões potencialmente – para não dizer escandalosamente – bregas, aqui ele deixou seu lado brincalhão, por assim dizer. As imagens fortes que ficaram no imaginário coletivo graças especialmente ao primeiro e ao segundo Exterminador (ambos de James Cameron) simplesmente não existem na versão 4.0 – embora mais tempo seja necessário para se comprovar isto. Os melhores momentos, se chamados assim, devem ser os da pura referência, e nem como tal têm certeza de funcionarem.

Na citação ao primeiro, o encaixe no roteiro é natural, mas, neste caso, o uso de algo anterior da franquia tende a levar mais à comparação e à inevitável “diminuição” do filme do que à homenagem – se for para ver esta como positiva. Já na alusão ao segundo, quando ouvimos a música trazida dele, ela surge como um barulho. Se a força da cena no primeiro Exterminador faz a daqui se aproximar menos da referência do que da reverência, a ponta ligada ao segundo vem quase como uma negação daquele. A Salvação não homenageia nem se desgarra do passado de um jeito convincente.

Por outro lado, é bom dizer que roteiro e direção evitam desenhar cada letra para explicar o que vemos, deixam boas ideias no ar, o que varia entre a permissão para participar da experiência e o confuso. O porém é que uma possível assinatura mais firme de McG (o que não é obrigatório) também vai para o espaço. Ele filma bons momentos (a combinação de plano-sequência com efeitos visuais é maravilhosa em mais de uma vez) e, apesar de o filme ter intermináveis, incontáveis e zoadentas cenas de ação, também consegue criar uma tensão suficiente em determinadas pontos, ou próximo a eles. O complicado é elogiá-lo por isso, já que a capacidade de apreciar e criar essa sensação parece vir de toda maternidade americana.

As pouco menos de duas horas passadas no término da sessão ilustram ainda mais essa espécie de falta de confiança no próprio filme, já que pelo menos uns 20 minutos em boa forma podem ter se perdido em meio à eliminação de gordura para o corte final. Essa eliminação, no entanto, talvez ajude o final (sem incluir a narração), que valoriza o humano sem tanta pieguice, é verdade, mas vem com um jeito calculado – não no sentido de cuidadoso, e sim de pré-concebido dentro de um terreno seguro. O que, infelizmente, fecha um resultado genérico demais para o potencial que o próprio filme às vezes dá sinais que tem – ou tinha.

Filme: O Exterminador do Futuro: a Salvação (Terminator Salvation – EUA/ Alemanha/ Reino Unido/ Itália, 2009)
Direção: McG
Elenco: Christian Bale, Sam Worthington, Bryce Dallas Howard, Anton Yelchin
Duração: 115 minutos

8mm
67

Roger Ebert é um desses caras que faz você pensar algumas centenas de vezes antes de dizer que exerce a mesma prática dele – embora por mais vezes ainda eu já tenha pensado em levantá-lo pelo pescoço para aplicar-lhe uns tabefes.
Com dificuldades de se mover e sem voz graças a um câncer de tireóide (e complicações que resultaram em perda de parte da mandíbula), fez aniversário na quinta-feira. Aos 67 anos, ainda escreve críticas quase que diariamente.

Filmes da semana:
1. Underground – Mentiras de Guerra (1995), de Emir Kusturica
2. O Exterminador do Futuro: a Salvação (2009), de McG (cinema)
3. Pixote: a Lei do Mais Fraco (1981), de Hector Babenco
4. Limite (1931), de Mario Peixoto
5. A Falecida (1965), de Leon Hirszman

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

domingo, 14 de junho de 2009

Cinema-verdade*

24 de maio, domingo, 15h30min – de Itabuna. Paulo acaba de descobrir o vencedor da Palma de Ouro no festival de Cannes – via Internet. Meio irritado, liga para Peter, que atende.
- Alô?
- Que merda!
O carinho das duas palavras é suficiente para Peter reconhecer a voz.
- Diga, idiota.
- Pra mim, marmelada!
- Pra mim, não. Prefiro amendoim mesmo. Mas só porque a castanha acabou aqui. Em compensação, a cerveja tá ótima. O que houve?
- Você tá onde? Marmelada porque Haneke ganhou a Palma de Ouro.
- Sério? Viva Michael maluco!
- Viva, não. Ele só ganhou porque Isabelle Huppert era a presidente do júri.
- Ah, qual é, só por que ela já trabalhou duas vezes com ele?
- Isso, aposto que ela foi pra Cannes pensando em como defender o filme do queridinho dela, e não em qual filme seria melhor de verdade. Isso que dá colocar gente relacionada com um dos diretores...
- Ué, nada mais natural o presidente do júri ser alguém com ligação com algum diretor. É o meio deles, ora. Você queria quem na presidência do júri de um festival de cinema? Gustavo Kuerten?
- Seria uma boa ideia, brasileiro de responsa e adorado na França. Melhor que aquela puxa-saco.
- Olha, como a cerveja tá uma delícia, vou fingir que não ouvi isso. De qualquer jeito, veja o outro lado da coisa. Ganhou um cara que vai na contra-mão desse pessoal que defende a câmera tremida, como se ela tivesse epilepsia.
- É, isso é bom. E também ele não é daqueles que só porque projetam publicidade em cinemascope acham que fazem cinema.
- Sim, e como você mesmo diz, abre aspas, a publicidade é o cinema dos preguiçosos. Ou dos que não têm nada a dizer, fecha aspas. Ou seja, o cinema venceu. Comemore!
- Ah... nem tanto. Torcia pra Bastardos Inglórios, você sabe.
- Tarantino não precisa mais de prêmio nenhum. E Huppert não daria nada pra ele nem reencarnada.
- Ele ganhou melhor ator, com o alemão, ou austríaco, sei lá. Christoph Waltz, acho. Mas parece que o filme em si não é aquela coisa toda. Você deve ter lido, teve gente falando que é o menos empolgante dele.
- Ah, eu sempre achei estranho imaginar o mesmo cara de Kill Bill e Pulp Fiction fazendo um filme sobre a segunda guerra. Quer dizer, espero errar, mas ainda acho. A onda dele é fazer tudo meio de brincs, mesmo quando é profundo do jeito dele. E não sei como ser assim com o holocausto.
- Olha... a depender da situação, eu duvido até de Ronaldo Fenômeno, mas nunca de Tarantino.
- Eu também. Você sabe que gosto violentamente de tudo que ele fez até hoje. Todo dia, antes de dormir, rezo: “Ezequiel, 25:17...”. Ele é o único diretor que pode se vangloriar de ter todos os filmes em minha dvdteca. Pra duvidar da capacidade desse cara, só mesmo com Alzheimer.
- Pois é. E o filme foi montado às pressas, a Universal até pediu um novo corte, mais curto. De qualquer jeito, não faltou quem escrevesse declarações de amor ao filme.
- E o filme dele parece ser uma declaração de amor ao cinema também.
- É, li algo do tipo. Dizem que o dele, o de Resnais e o de Almodóvar colocam o cinema maior que a vida.
- Nada mais verdadeiro.
- Também acho. E acho triste. A gente divagando sobre o que não viu nem vai ver tão cedo.
- E alguns a gente nem vai ver no cinema.
- É foda.
A ligação cai. Ou um dos dois desliga. Pouco importa.

Ele sorri
Michael Haneke, 67, enfim levou a Palma de Ouro em Cannes por A Fita Branca (Das Weisse Band – Áustria/ França/ Alemanha, 2009). Nele, o austríaco nascido na Alemanha parece ter feito outro filme sobre o que de pior existe no ser humano – de novo. Mas, pra surpresa de muita gente, dá pra encontrar foto desse mesmo cara até sorrindo.

E eles também
Peter e Paulo são uma referência aos nomes de personagens (e apenas aos nomes, por favor!) de Funny Games – Violência Gratuita (1997), que tem versão americana de 2008 idêntica e dirigida também pelo próprio Haneke. Em ambas, na verdade, os personagens são Peter e Paul. Tenha medo deles. Mas não de Haneke. Vejam Caché (2005) e a Professora de Piano (2001). E não me culpem.
(Embora nem tudo de Haneke tenha chegado no Brasil, os três estão disponíveis em DVD.)

Ps: Bastardos Inglórios tem estreia no Brasil prevista para 23 de outubro. Defendo uma boa gorjeta ao homem do calendário.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (impressa) de junho do jornal Direitos http://www.jornaldireitos.com.br/.

sábado, 13 de junho de 2009

Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado*



Ouvir para dizer... o quê?

Da escolha do título à última frase, Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (idem, 2009, Brasil), de Joel Zito Araújo, me fez pensar basicamente em duas questões o tempo todo. A primeira delas me veio à mente ao lembrar que, dias antes, num programa esportivo, o jornalista Paulo Vinícius Coelho se referiu à enfim confirmação da transferência de Kaká para o Real Madrid como uma espécie de notícia que não era mais novidade – num chavão do jornalismo, seria como se o homem ameaçasse morder o cachorro tempo suficiente para tornar a mordida (do homem) esperada, “natural”, quase uma não-notícia. Já o segundo ponto diz respeito à presença de um tipo de tom acadêmico, que (basicamente via uma quase sempre destoante narração) entra e sai do filme sem pedir licença, e que alguns podem achar inevitável pelo diretor ser quem é.

Joel Zito, mineiro autor de vários médias-metragens, documentários, vídeos institucionais e campanhas eleitorais para TV, trata em Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado de um dos mais conhecidos produtos de exportação do nosso país: as mulheres. A visão da brasileira que mais agrada a Europa (inevitável usar generalizações não só pelo tema, mas pelo que o filme em parte repete) é não só de uma negra ou mulata, sorridente, gostosa e fogosa, mas também de uma “putana”, como diz um italiano – como poderia dizer também um espanhol, um holandês ou um alemão, por exemplo. Da mesma maneira, não é nova a ideia de mulheres nordestinas pobres que partem para lá – cientes ou não da situação exata onde se metem, com ou sem parceiro certo, com ou sem prostituição. Nesses pontos, perde-se um tempo precioso em depoimentos que apenas reforçam a visualização do “primeiro mundo” em relação às mulheres daqui. O filme-denúncia funciona como tal apenas para parte desse estrangeiro, e muito pouco para o brasileiro.

Outro tema abordado é recorrente na carreira de Joel Zito: o negro. Defensor de que a produção audiovisual brasileira prega um branqueamento da população, ele já disse que “nossa estética é racista porque considera os seres humanos de características arianas mais belos, mais inteligentes e superiores. Assim como Hitler considerava”. Em Cinderela, Lobos e um Príncipe Encantado, apesar de não tão extremo, a defesa de seu ponto de vista racial (onde os negros são racistas com os negros) soa como uma escolha de uma verdade pessoal que, talvez cambaleante demais para ser sustentada como uma regra dentro do próprio país (principalmente se comparado a outros cujos passados apresentam problemas étnicos constrangedoramente maiores), outra vez parece um produto sob medida para exportação. Um ponto decepcionante, por se tratar de alguém de dentro falando sobre gente de dentro, mas com um olhar que flerta demais com o de fora, que geralmente tem no mínimo miopia – e nunca usa óculos.

Verdade que o filme anda, e tem grandes momentos, graças aos depoimentos vistos como casos únicos, e não como partes de uma ou várias teses. Do cabeleireiro a prostitutas, passando por um travesti, quando opinam dentro do filme, eles se tornam indivíduos maiores que a referência inicial. Nas melhores cenas, a honestidade dos entrevistados, gente “comum” e “anônima” na maioria das vezes, nos lembra Eduardo Coutinho – e Edifício Máster (2002), mais especificamente –, mas o humor remete a American Pie (1999), quando rir um bocado não quer dizer que o filme seja bom.

Coutinho, por exemplo, dá ouvidos aos seus personagens para ele mesmo ter uma voz própria forte, que transborda fluidez e talento não só com gente e com o cinema, mas com um jeito de fazer cinema. Já Joel Zito parece um tipo de Coutinho que, para evitar uma simples imitação, traz para a tela o academicismo que pode diferenciá-lo – tem até pós-doutorado no setor de Rádio-TV-Cinema pela Universidade do Texas.

No final, com o “não sei mais quem é cinderela, lobo e príncipe encantado” e “quem sou eu para julgá-las?”, ele se prova incapaz de terminar o filme de maneira mais “audiovisual” e menos “didática”, sem recorrer a clichês supostamente humanistas – e narrados, ainda por cima. Ele passa um marcador de texto fluorescente no óbvio, como se tivesse que reiterar e justificar o fato de não achar uma solução “acadêmica” para o problema proposto. É uma pena terminar assim um documentário com material tão rico, prejudicado pela obsessão de se dar satisfações e de se colocar a própria voz maior que a dos outros – que, neste caso, carregam o filme.

Filme: Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (idem, 2009, Brasil)
Direção: Joel Zito Araújo
Duração: 105 minutos

8mm
Tragicômico

Num dos depoimentos mais interessantes do filme, vemos parte de um programa no qual vemos o repórter, numa caricatura populista, entrevistando um acusado de abusar de uma menor. O curioso é que o ele é um americano que diz não falar português, e o repórter, que não sabe inglês, chama uma colega da produção (aparentemente surpresa) para ajudar no diálogo. A expressão “a casa caiu”, que já tem um sentido específico e não literal (o que inviabiliza a tradução para “the house fell”, por exemplo), foi transmitida ao americano como “the house feels” – “a casa sente”. Toda a conversa parece programada para provocar o riso, com tradução e expressões faciais que parecem cuidadosamente escritas e descritas previamente – embora não ache que tenham sido. O adendo é que, se a cena é hilária (e muito), não deixa de ser triste, pois há gente que consiga levar a sério um episódio tratado daquele jeito.

Filmes da semana:
1. A Teta e a Lua (1994), de Bigas Luna
2. Perdidos na Noite (1969), de John Schlesinger
3. Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (2009), de Joel Zito Araújo (cinema)
4. O Espelho (1975), de Andrei Tarkovsky

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 6 de junho de 2009

Vá e Veja*



Pesadelo real, sonho de cinema

Uma mãe e sua prole, duas meninas gêmeas e o mais velho – ainda adolescente. Ela tenta convencê-lo a não ir à guerra, pois insiste que ele lutar pelo país, na situação em que vivem, significa condenar a própria família. Chega a defender que o filho mate logo as três. Nessa introdução (após uma espécie de prólogo) de Vá e Veja (1985), de Elem Klimov, vemos aparentemente civis comuns, antes de eles (e especialmente ele) se tornarem parte integrante de um horror soviético, – aqui mais bielo-russo – representado por Florya, que traz muito do próprio diretor.

Dos seis aos 12 anos, Klimov foi contemporâneo da segunda guerra mundial. A experiência foi brutal o suficiente para ele dizer que o filme seria “uma versão leve” do que eles viveram, e que “seria incapaz de filmar o que foi”. Apesar deste terror supostamente aliviado, o que Klimov escolhe para entrar na tela nos chega com, provavelmente, a mesma força visual e sonora que fez essas lembranças não saírem de sua memória.

Prova maior é que Klimov faz de Vá e Veja um filme com grandes cenas, sem o que de ruim essa característica pode induzir. Você não pensa somente na “cena da vaca”, ou na “cena do quadro na poça” (para ficar só em duas que não revelam muito se apenas citadas), mas em outras imagens que duram poucos segundos – como a de um estupro, longe de ser mostrado. Klimov abusa de close-ups e principalmente de planos-sequência com steady-cam que, apesar de hipnóticos por si só, têm a naturalidade necessária para se perceber, depois, que eles estão ali prioritariamente para compor, peça por peça, um pesadelo filmado.

Este horror é tão perfeitamente captado que Klimov passa a impressão de que não filma violência (presente em todo filme e de várias formas), mas sim a agonia. E ele é feliz ainda mais ao conseguir, mesmo nesse panorama, trazer poesia para a guerra – o que já não era nada novo na época (Apocalipse Now, por exemplo, veio em 1979) – de um jeito próprio, junto com uma dor “(bielo)russa” bem única que parece emanar daquelas bandas soviéticas. Até quando ele convoca uma espécie de elegia, ela não aparece para apenas enxertar um sabor melodramático ao resultado, mas sim como parte, se por um lado bem diferenciada, também integrante do todo.

Após duas horas de potência e equilíbrio suficientes para minimizar um possível deslize rumo ao final, Klimov ainda tem a audácia de nos premiar com um desfecho no mínimo fantástico – em mais de um sentido e sempre com até o “o” maiúsculo. A atuação de Aleksei Kravchenko (que chegou a ser hipnotizado nas filmagens) em todo filme, mas especialmente nesse inusitado “encontro” derradeiro, marca um desses momentos que, se pouquíssimos tentam chegar perto, menos ainda conseguem.

Terminado o filme, a busca por superlativos ligados a força – e todo leque aberto por ela –, para ajudar na construção da ideia do texto (sem ser literal), vira uma coleção de tentativas frustradas. Para resumir, melhor dizer que a maneira como o final é mostrado, mais do que uma sensação, deixa a certeza que só o cinema poderia expressá-lo daquele jeito.

Filme: Vá e Veja (Idi i Smotri, 1985, União Soviética)
Direção: Elem Klimov
Elenco: Aleksei Kravchenko, Olga Mironova, Liubomiras Lauciavicius.
Duração: 142 minutos

8mm
Réquiem para um Massacre

Cheguei a ver na Internet uma outra versão para o nome do filme: Vêm e Vê – Réquiem para um Massacre. Não fucei o suficiente pra saber se esse era um nome da versão VHS ou de uma outra tradução (para Portugal, por exemplo), mas o título é no mínimo didático. Embora claramente pouco comercial, o que talvez explique essa “falta de explicação” em outros idiomas e na versão brasileira atual (imagine aquela tatibitati-patricinha-de-bévelirrios locando um filme “Réquiem para um Massacre”), não deixa de ser mais um pouco de informação sobre o resultado.

Cinema
Lá se vão duas semanas sem falar sobre filmes que passam no cinema daqui, mas foi difícil criar coragem e pagar pra ver o que foi exibido por lá nas duas últimas semanas – a publicidade dos filmes já é gigantesca, mas me sinto bem em não falar o nome deles. Na próxima semana, se não comentar O Exterminar do Futuro (o estado é tão crítico que o fato de não ser dublado vira comemoração), espero falar de alguma coisa que veja em Salvador – o que se por um lado significa mais opções de filmes, também significa menos tempo para o texto. Mas não tenho dúvida de que vivo melhor assim.

Filmes da semana:
1. Vá e Veja (1985), de Elem Klimov
2. Cada um com seu Cinema (2007), de vários diretores
3. Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985), de Emir Kusturica
4. Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino
5. Os Idiotas (1998), de Lars Von Trier
6. A mulher e o Atirador de Facas (1999), de Patrice Leconte
7. Fuga (2006), de Pablo Larrain

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.