sábado, 25 de julho de 2009

Full Frontal*



Experimentalismo e confusão

Full Frontal (idem – EUA, 2002), de Steven Soderbergh (Traffic, Erin Brockovich, trilogia dos Homens e do Segredo), é um filme que trabalha muito – talvez mais do que deveria – com ambiguidade e dúvida. Da apresentação dos créditos, que podem fazer alguém achar que o disco veio errado, até as palavras do próprio Soderbergh sobre o processo de produção.

Visto em parte como uma comédia, Full Frontal funciona mais, na verdade, como uma completa bagunça. É um filme dentro do filme, mas nada é claro dentro de cada um deles. O que é bom por teoricamente fazer do espectador um participante, soa estranho quando se desconfia de um excessivo desgoverno. O experimentalismo presente e chamativo parece nos levar mais ao destaque da tentativa do que à tentativa de fazer o filme andar.

Os melhores momentos, por exemplo, parecem esquetes, ou minúsculos curta-metragens. Bom dizer que o que os torna ainda melhores são, muito provavelmente, as escolhas de Soderbergh (para as filmagens, ele distribuiu uma lista com dez mandamentos para os atores, que viveriam com independência e limitações – ambas ligadas ao baixo orçamento – que remete a um filme universitário independente), cujos lapsos, por outro lado, também frisam a impressão de incompatibilidade entre cada um desses pedaços.

O curioso é que os pontos em que levantamos ou franzimos a sobrancelha para Full Frontal, no que possivelmente seja seu maior mérito, talvez venham justamente da estrutura esquizofrênica e de sua facilidade de dialogar com a farsa – inclusive no rumo tomado (ou na falta dele). Embora seja bom reconhecer coragem e talento de quem está envolvido, é compreensível o espectador que considera a confusão maior que todo o resto.

Ps: Ainda assim, não vejo a hora de assistir ao The Girlfriend Experience (2009) – o novo dele, que (com o nome que tem) teve a audácia de dar o papel principal a Sasha Grey, atualmente a maior estrela (e prodígio) pornô dos EUA.

Filme: Full Frontal (idem – EUA, 2002)
Direção: Steven Soderbergh
Elenco: David Duchovny, Julia Roberts, Blair Underwood, Catherine Keener
Duração: 101 minutos

8mm
Deveras

Na segunda-feira (24), um razoável punhado de pessoas – no Centro de Cultura Adonias Filho – assistiu a Deveras (2008 – 30 minutos), do amigo e ex-colega de faculdade Paulo Thiago – que já tem nome de cineasta. Resultado interessante, com presença do próprio diretor, que falou um pouco sobre o projeto. Como já conhecia o documentário, bom salientar a qualidade de projeção (som e imagem) que manteve intacta a qualidade do filme. Lamentável, no entanto, foi o desrespeito de umas dez pessoas que entraram (sem delicadeza alguma) depois da sessão iniciada.
Obs: Em breve – ainda este ano, provavelmente – novidade sobre a exibição de outra produção regional por lá.

Top-10
“Gostaria muito que você listasse os 10 melhores filmes que você já assistiu. Ou será que é dificil porque tudo é porcaria?”. O comentário – referente às minhas palavras sobre Austrália – foi feito por Talita, de quem espero compreensão por tomar a liberdade de pontuar o texto, e a quem agradeço por me levar a uma ideia.
Em primeiro lugar, assumo total incapacidade de fazer uma lista como a que pediu. Não sei, por exemplo, nem listar meus dez diretores favoritos. E, para piorar, tampouco consigo cravar qual o melhor filme de cada um deles. Isso sem incluir aí, logicamente, aquelas exceções positivas de diretores cujas obras não aprecio tanto. Já desisti.
Ainda assim, sua sugestão me levou a outra, completamente desnecessária (como é a de fazer uma lista de filmes preferidos), mas que pode ser um exercício interessante de rasa retrospectiva. A partir de hoje, publico, no final de cada mês, uma lista com os dez melhores filmes vistos naqueles últimos 30 dias. Como ainda não chegamos a agosto, mas para aproveitar o gancho do texto anterior, o ranking é retroativo. Lá vão os melhores de junho.

10. Banda à Parte (1964), de Jean-Luc Godard
9. Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981), de Hector Babenco
8. Cada um com seu Cinema (2007), de vários diretores
7. Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985), de Emir Kusturica
6. A Mulher e o Atirador de Facas (1999), de Patrice Leconte
5. Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz
4. Hardcore (1979), de Paul Schrader
3. Pulp Fiction (1994), de Quentin Tarantino
2. Vá e Veja (1985), de Elem Klimov
1. Underground – Mentiras de Guerra (1995), de Emir Kusturica

Filmes da semana:
1. Vício Frenético (1992), de Abel Ferrara
2. Dogville Confessions (2003), de Sami Saif (média)
3. A História de Adèle H (1975), de François Truffaut
4. Minha Mãe (2004), de Christophe Honoré
5. The Spirit (2008), de Frank Miller
6. Full Frontal (2002), de Steven Soderbergh
7. O Segredo de Berlim (2006), de Steven Soderbergh

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 18 de julho de 2009

Austrália*



Épice de silicone

Com cada vez mais força e como pouca gente hoje em dia com a mesma intensidade, Baz Luhrmann tenta promover o kitsch em seu estado puro – se é que isso é possível. Ele o defende de forma tão escancarada que, a depender do humor e da rigidez de quem o veja, seu estilo pode perfeitamente ser classificado como o mais límpido brega. Verdade que esse abraço a todo tipo de excesso e de referência teve um momento poderoso em Moulin Rouge (2001), no qual sua falta de sutileza casou perfeitamente com sua obsessão barroca. Mas também é verdade que em Austrália (Australia – Austrália/ EUA, 2008), apenas seu quarto (e mais recente) filme em 16 anos de carreira, o perfeccionista Luhrmann (também do Romeu e Julieta de 1996) consegue a façanha de se repetir à exaustão na forma e, mesmo assim, alcançar um resultado que parece filtrar o que ele tem de pior como cineasta.

Estão lá, em maior ou menor quantidade, todos os recursos fáceis que o caracterizam. O ritmo predominantemente publicitário, muitas cores (ainda mais saturadas pelas próprias locações), muita música (às vezes a grifar o que já está em letras garrafais), a emoção de plástico entre estrelas (Hugh Jackman e Nicole Kidman) e, mais especificamente nesse caso, um abuso pouco antes visto de câmera lenta – para aumentar um (melo)drama que nunca convence pelo modo como é mostrado na tela.

Batem ponto também, por outro lado, suas pretensões de mesclar e referenciar diretamente gêneros para então tentar “revolucioná-los”. Se em Moulin Rouge ele fez um eclético apanhado da música pop (principalmente da segunda metade) do século XX e o transformou num todo único e funcional dentro do filme, aqui ele trabalha com uma trilha original cujo maior elogio é ser chamada de genérica. Somewhere Over The Rainbow e O Mágico de Oz não conseguem se firmar como algo além da citação, caso idêntico ao trinômio gaita/morte/família, que remete especialmente a Era Uma Vez no Oeste, de Sergio Leone.

Parte dessa ineficiência do filme talvez decorra do fato de ele ser, em boa parte de sua ainda mais generosa duração, um institucional. Austrália tem um final que defende não só seu valor documental como a miscigenação e um respeito à pluralidade no país. Graças a esse tom, fica a triste impressão de que Luhrmann (induzido ou não) deixou uma preocupação social falar mais alto que sua própria voz, geralmente pouco interessada em qualquer tipo de engajamento. E essa sua voz, por mais que tenha a beleza de seu timbre questionada, ainda é mais interessante que o teor panfletário da história australiana tratada com uma nada discreta superficialidade.

O resultado final mostra também que Baz Luhrmann, curiosa e infelizmente, se aproxima muito menos de uma maior presunção criativa – recicladora, copiadora, abobalhada, como preferir – do que de um piloto automático hiper-ativo. Se antes ele parecia atrair (e pecar) justamente por um certo tipo de desgoverno, aqui ele se arrisca menos audiovisualmente e, quando o faz, se perde em meio a concessões mais fortes. A conseqüência disso é um produto artificial, grande e vistoso. Com todos os sinais, portanto, de um épico. De silicone.

Filme: Austrália (Australia – Austrália/ EUA, 2008)
Direção: Baz Luhrmann
Elenco: Hugh Jackman, Nicole Kidman, Brandon Walters
Duração: 165 minutos

8mm
2020

É impressionante como, em alguns momentos, eu poderia apostar que via na tela o mesmo Baz Luhrmann de Moulin Rouge (para mim, o seu melhor de longe) – e, como juiz da sorte, perderia. O final, por exemplo, é uma versão 2.8 do mesmo Richard Roxburgh, The duke, a correr e gritar “My ending!” – antes de receber um murro. Mas, bom reiterar, não é.
Agora, por incrível que alguns possam considerar, ainda acho que Moulin Rouge será um filme que, analisado daqui a 10 anos, vai levar alguém a dizer: “ele tem todas as afetações que marcaram essa doença publicitária no cinema dos anos 2000, mas é realmente muito bom”. Espero, contudo, que não seja o bloco do eu sozinho.

Filmes da semana:
1. Ana e os Lobos (1973), de Carlos Saura
2. O Pornógrafo (2001), de Bertrand Bonello
3. Os Incompreendidos (1959), de François Truffaut
4. Austrália (2008), de Baz Luhrmann
5. Extermínio (2002), de Danny Boyle
6. O Chicote e o Corpo (1963), de Mario Bava
7. The Industrial Symphony n.º 1: The Dream of the Brokenhearted (1990), de David Lynch (média)

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Marlon Brando me ligou*

Em uma locadora, a sessão de clássicos europeus é habitada por Natália e Marcos – recém migrado de território asiático. Ela segura um DVD em uma mão e fuça com a outra, enquanto Marcos apenas observa – a prateleira. Não acostumado à falta de coordenação motora de Natália, o filme escorrega e cai, antes de ser prontamente apanhado por Marcos. A queda foi um acidente, mas essa certeza só nós temos – além, é claro, da própria destrambelhada. Marcos, na dúvida, acha que aquilo foi um descarado convite ao ato – de ver filmes, pelo menos.
- A Aventura? Meu Antonioni preferido..., diz ele, que acha o filme bonito. E um saco.
- Hum... vou rever... – responde Natália, querendo sublinhar que aventura mesmo foi o pouso de emergência do DVD.
- Gostou quando viu?
- Um pouco.
- Eu também não gostei muito de primeira, mas depois adorei...
- Que assim seja comigo... E dele, você gosta assim também? – pergunta, apontando com o queixo para a camisa de Marcos, uma homenagem a O Selvagem, de 1953, e Marlon Brando.
- Gosto sim, mas não acho o melhor Brando da época. Até pelo filme, prefiro ele em Uma Rua Chamada Pecado.
- Mas ali tem muito do texto de Tennesse... Williams... que é f... fantástico!
- Eu prefiro Alabama Whitman...
- Como?
- Eu não li a peça original dele, mas dizem ser muito boa mesmo...
- É ótima, não muda muito do filme não.
- E de O Selvagem, você gosta?
- Gosto, mas vi há muito tempo. Só lembro de Marlon Brando dono de cada cena no filme...
- Ele tinha essa mania...
- É, é fácil ser bonito. Difícil é ter o talento dele. Johnny Depp que o diga...
- Como assim?
- Digo, Johnny Depp é basicamente uma versão atual e piorada de Brando. Além de bom ator e com carisma, tem aquela beleza que consegue agradar a todo mundo sem ser banal, e tem presença de cena. A câmera não só gosta como tem ciúmes deles, sabe?!
- A câmera sempre teve bom gosto. E problemas com a monogamia.
- Pois é... mas o ponto é que, quarentão quase cinqüentão, Johnny Depp não faz o que o Brando quarentão e cinquentão fez nos anos 70, com O Poderoso Chefão e Apocalipse Now. Eram papéis nada a ver com o Brando dos anos 50, que já tinha revolucionado tudo. Já Johnny Depp fica entre Jack Sparrow e as bizarrices de Tim Burton, o que ele já fazia desde antes de ser alguma coisa...
- É, faz sentido... – diz Marcos, que sente o vibrar de seu telefone. Olha, vê que é seu irmão, e discretamente recoloca o celular no bolso. Volta seu pensamento à conversa e, embora não concorde exatamente com Natália, percebe que a ideia dela flerta com um mínimo de nexo. Para evitar desavenças, continua...
- Mas Brando é Brando... E Coppola é Coppola...
- Não sou fã de Coppola, o Francis... na verdade até que gosto dessa fase anos 70, mas só dos dois Chefões e de A Conversação. A partir de Apocalipse Now, que ainda gosto, ele fica meio comum...
- Comum?
- É... pra resumir, digamos que no começo ele parecia um diretor que conciliava talento e pretensão, com lapsos de autor forte, quase a estampa de gênio. Depois ele continuou como um diretor que conseguia um equilíbrio entre talento e pretensão, só que burocrata demais e autor de menos pro meu gosto... – justifica Natália.
- Não gosto de cravar essas coisas, sempre mudo de ideia, mas acho que Apocalipse Now é o melhor filme de guerra que eu já vi. Aliás, tem Vá e Veja... e, ah meu Deus, tem Underground de Kusturica também...
- Eu tento, mas não consigo gostar de verdade de Kusturica...
- Você apela pra Marlon Brando pra desmerecer Johnny Depp, fala mal de Coppola e, o pior, consegue não adorar Underground, o atestado definitivo de escrotidão; você merece morrer sozinha e sem filmes, sua abestalhada!, pensou, antes de dizer... - Tente mais, ele vale a pena...
Marcos sente o telefone outra vez. Enquanto o traz para o ouvido, gesticula um pedido de licença para Natália, que não larga Antonioni e continua sua busca.
- Alô?!... Sim... Tô na rua ainda... Não, não devo demorar não. Só pegar uns filmes aqui e vou pra casa... Pronto, tá bom então... beijo... tchau.
Marcos recoloca o celular no bolso e caminha para a sessão nacional. Ele não falava com seu irmão, nem com sua irmã – muito menos com Sofia Coppola. Na verdade, ninguém ligou: era apenas um lembrete.

Underground
Marcos e Natália são empréstimos aportuguesados de Marko (interpretado por Miki Manojlovic) e Natalija (Mirjana Jokovic), partes integrantes da coisa linda que é Underground – Mentiras de Guerra, de Emir Kusturica. O melhor filme tragicômico de todos os tempos da última semana, que tem a versão nacional do DVD distribuída pela Lume Filmes, ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1995.

Trabalho
Deve ser bom ver Apocalipse Now (1979) e Underground (1995) no mesmo dia, com cada diretor falando de um conflito referente ao seu país, com guerras, relevância de seus resultados e tons muito diferentes de cineasta para cineasta – o que talvez seja o melhor da experiência. Só é preciso muito, mas muito tempo livre para a sessão dupla. Underground, cujo primeiro corte de Kusturica tinha bondosas 5 horas e 20 minutos, tem 170 minutos, contra 202 da versão redux de Apocalipse Now. Seja como for, uma boa maneira de ocupar quase dois turnos.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (impressa) de julho do jornal Direitos http://www.jornaldireitos.com.br/.

sábado, 11 de julho de 2009

Maradona por Kusturica*



Simplicidade entre egos

Maradona por Kusturica (Maradona by Kusturica, Espanha/ França, 2008) remete, desde o título, a quase um abalo sísmico. Além de gênios, ou no mínimo “vitoriosos” em suas áreas, ambos são muito conhecidos – e não necessariamente reconhecidos – pelo que falam fora dela. Trata-se, portanto, de um encontro de gente que faz absurda questão de se expressar. E o resultado desse encontro, que tenderia a ser um debate entre surdos que pensam parecido, é no mínimo singular – embora decepcionante se lembrarmos do que já fez Emir Kusturica: palma de Ouro em Cannes por Underground – Mentiras de Guerra (1995) e Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985).

O Kusturica músico, com sua guitarra e bem à vontade no palco, é basicamente o primeiro contato visual que temos com o filme, e um dos mais simbólicos. A cena nos mostra que a trilha sonora, para o diretor (nascido na Iugoslávia – Sarajevo, hoje Bósnia –, mas de etnia sérvia), mesmo num documentário, é quase obrigatoriamente uma eterna protagonista. E que, em muitos momentos, a ideia dele é se apresentar não apenas confortável diante daquele sobre quem fala, mas também fazer o que lhe vier à cabeça.

Prova disso vem poucos minutos seguintes a essa abertura. Kusturica liga praticamente metade de sua obra à vida de Maradona e família, antes de, ainda no primeiro terço do filme, refletir sobre sua posição como cineasta diante do que faz. O sérvio admite se sentir como o que sempre condenou: um paparazzo à espera da figura conhecida para invadir sua privacidade. Sem nenhuma ligação narrativa ou documental com o personagem, o pensamento traz uma honestidade que não glorifica, mas apenas expõe mais o diretor.

Essa questão entre biógrafo e biografado se torna ainda mais curiosa com o passar do filme. Especialmente (mas não só) quando não fala de si, Maradona solta intermináveis frases polêmicas (com alguns lugares-comuns que podem irritar), geralmente carregadas de paixão, aparentemente deixadas por Kusturica não para sublinhar a muitas vezes incoerência e egolatria de Don Diego, mas por achar importante amplificar uma voz que o sérvio vê como a de um líder em falta no mundo de hoje.

A própria voz do diretor, inclusive, também aparece acompanhada de um razoável ego, não obstante completamente distinto do hoje técnico da seleção argentina. Kusturica fala de seus filmes anteriores, do processo e, graças a uma conversa não mostrada com a esposa de Maradona, até de como ele, Kusturica, não conhece as mulheres – no ápice da amplitude entre o teoricamente essencial para o filme e um hipotético diário do diretor.

Outro momento chave começa quando assistimos a Maradona cantar uma música dedicada a ele. Inicialmente, nada de demais, até tudo no ambiente carregar uma emoção que leva Kusturica, com uma sensibilidade que nunca lhe faltou, a deixar o poder da cena impregnar o filme. O que ele volta a repetir próximo ao final, novamente com música e Diego presentes.

Apesar desse amor claro, e do indiscutível tato de trabalhar com trilha sonora em seus filmes, é triste (não exatamente pela escolha, mas pelo uso) ver Kusturica abusar de God Save the Queen, do Sex Pistols. Ela entra em animações que, se a princípio soam simpáticas pelo que foi comentado antes, depois de um tempo incomodam por uma repetição que flerta com uma preguiça, e que, atrelada ao “gol do século”, passa uma triste impressão de um Maradona apegado (para não dizer limitado) demais àquele jogo – contra a Inglaterra na copa de 1986, com a Guerra das Malvinas ainda bem fresca especialmente para a Argentina.

Bom dizer ainda que Kusturica, por outro lado, não tenta se limitar ao simples perdão ou condenação, mesmo com um personagem marcado por atitudes e características de ligação fácil com o maniqueísmo. Ele não é cruel, mas também passa longe da condescendência. No material de arquivo estão incluídas imagens de uma das maiores brigas do futebol europeu, entre Athletic Bilbao e Barcelona, na época clube de Maradona, que desfere pontapés e voadoras em quem vê pela frente; além de momentos dele em Nápoles (onde é Deus), nervoso, irritado e, literalmente, marcado por “não-me-toque’s” – para não falar de outro que mostra Diego em aberta hostilidade a todo um estádio.

Em meio a tamanha intensidade inerente ao personagem, o equilíbrio entre ambos refletido pelo título é também obtido no resultado, bem sóbrio. Verdade que a grande presença da questão política é maior que sua força real, que intimismo e caráter pessoal às vezes se confundem com desleixo e divagações fora de lugar, e que o filme não está perto do que de melhor Kusturica já fez. Também é impossível, contudo, negar o tom pessoal desses poréns, e os (poucos) grandes momentos do filme, que compensam, ou tentam compensar, a irregularidade dentro de 90 minutos.

Filme: Maradona por Kusturica (Maradona by Kusturica, Espanha/ França, 2008)
Direção: Emir Kusturica
Elenco: Diego Armando Maradona, Emir Kusturica
Duração: 90 minutos

8mm
Cá e lá

Num paralelo com Pelé Eterno (2004), de Anibal Massaini Neto, impossível salientar quão diferentes são os dois filmes. Desde o toque autoral e posicionamento ideológico (em que vale a discussão sobre a necessidade desse segundo) até o valor informativo-documental, passando pela pieguice – e pela falta de tudo isso. Seja como for, nenhum dos dois é desprezível.

Não sei
Embora ainda ache um bom filme, Maradona por Kusturica foi, pelo menos pra mim, claramente prejudicado por uma revisão. O que, se definitivamente não é uma coisa boa, é também bom relativizar, já que ainda me visualizo revendo-o dentro de pouco tempo. Mais até, por exemplo, do que Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, que acho melhor. Não sei explicar o porquê.

Filmes da semana:
1. Novo (2002), de Jean-Pierre Limosin
2. Fanny e Alexander (1982), de Ingmar Bergman
3. Maradona por Kusturica (2008), de Emir Kusturica
4. A Ascensão (1976), de Larisa Sheptiko

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 4 de julho de 2009

Transformers 2: A Vingança dos Derrotados*



Narcisismo

Transformers 2: A Vingança dos Derrotados (Transformers 2: Revenge of the Fallen, EUA, 2009), de Michael Bay (A Rocha, Bad Boys I e II, Armageddon, Pearl Harbor), é a prova de que, não importa quanto um diretor se repita (e repita o óbvio), ele pode sempre se superar. O que significa que essa arma audiovisual de destruição em massa, que lembra vagamente um filme, pode ser vista como o ápice da “autoralidade” de Michael Bay – elevando seu equilíbrio entre dinheiro e estupidez a um nível dificilmente já ambicionado antes –, que ratifica o quão seguidamente deplorável pode ser um “autor”, aqui a caminho do cada vez pior.

Temos, nessa continuação, outra vez o fio narrativo apenas protocolar – já que o importante é reduzir tudo a destroços –, a obsessão pela velocidade e pela extravagância (visual, sonora, bélica), o materialismo, o machismo. O grande feito de Bay, no entanto, é conseguir potencializar tudo isso no que caracterizava não só sua obra e o primeiro filme, mas o que existe de pior na caricatura do americano pouco inteligente e conservador – sem ligação necessária entre o último e o penúltimo.

O próprio Transfomers 2 parece ser uma caricatura da caricatura. Do jeito como é mostrado o jovem americano à maneira como é apresentado (e mantido) o sexo feminino, Mikaela (Megan Fox, tão engessada que é difícil comentar algo além da óbvia beleza), uma dessas mulheres-pôsteres de borracharia – literalmente –, passando pela visão com certo desdém das coisas de fora dos EUA. Bay passa a impressão de querer sacralizar a preguiça, eterna companheira dos clichês e estereótipos, ambos presentes e sublinhados aqui.

Bom dizer ainda que, mesmo dentro de uma história tão simplória, o roteiro consegue ser confuso, alcançando o excepcional feito de complicar o nada, a multiplicação do vazio por zero. Não deixa de ser curioso, também, que entre tantos tristes e repetitivos simbólicos momentos do filme, o melhor (como exceção) talvez seja justamente o de uma conversa entre o homem, Sam (Shia LaBeouf), e seu carro/robô.

Eles (os robôs) estão, inclusive, tão donos do filme que parecem ter impedido Michael Bay de editar as lutas entre eles. Insatisfeitos com o que levaram ao chão no primeiro filme, eles são apresentados a alguns dos mais conhecidos pontos turísticos mundiais, prontamente ameaçados ou demolidos – com preferência pelos maiores. Assim, junto com suas máquinas computadorizadas, Bay dá sinais de que, em breve, pode admitir a insuficiência do planeta Terra como locação para seus filmes.

Com toda essa imponência, Transformers 2 pode ser resumido como um gigantesco e anabolizado falo, em orgulhosa exposição ininterrupta por duas horas e meia. É inevitável observá-lo sem arregalar os olhos e soltar um “nossa!”, ao presenciar essa megalomania que traz tamanho e opulência inatingíveis para o resto do mundo. Com uma paixão cega por esse seu perfil diferenciado e inigualável, ele desconhece não só o potencial de suas outras funções, como também o senso de tolerância alheia para a auto-exibição. O que pode convencer (além de a ignorância dele próprio) quem gosta de coisas grandes, desconcertantes e subaproveitadas (ou inúteis, a depender do ponto de vista), mas não quem espera, além de efeitos especiais, um mínimo de esmero. O que não acontece, nem dentro dos padrões de Michael Bay – que, comparado a esse aqui, faz o primeiro Transfomers parecer um bom filme.

Filme: Transformers 2: A Vingança dos Derrotados (Transformers 2: Revenge of the Fallen, EUA, 2009)
Direção: Michael Bay
Elenco: Shia LaBeouf, Megan Fox, John Turturro
Duraçao: 150 minutos

8mm
Crença

"As pessoas são conscientes de que este não é um filme sobre atuações. Não posso criticar o filme, porque me deu uma carreira e abriu todas as portas para mim". Sobre Transformers, Megan Fox demonstra uma lucidez que sua personagem nele não teria. E que Michael Bay não foi capaz de aceitar.
Entre outras coisas, o diretor afirmou que Megan Fox “diz algumas coisas ridículas porque tem 23 anos e ainda tem que crescer muito”, e que Nicolas Cage e Ben Affleck não eram grandes atores antes de atuar com ele. “Gosto de pensar que tenho sorte construindo carreiras de atores com meus filmes”, ainda cravou.
Graças a frases como essas, Bay talvez ache ser uma mistura de Scorsese, Stanislavski e Spielberg. E talvez realmente acredite.

Filmes da semana:
1. Lolita (1962), de Stanley Kubrick
2. Tiresia (2003), de Bertrand Bonello
3. Danton (1983), de Andrzej Wajda
4. O Hospedeiro (2006), de Joon-ho Bong
5. Transformers 2 (2009), de Michael Bay (cinema)
6. Vida cigana (1988), de Emir Kusturica

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.