quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Bons Companheiros*

Os dois já conversam há um bom tempo.
- Mas e por que vocês não deram certo?, questiona Isabelle
- A gente brigava muito. E ela perdia as estribeiras por qualquer coisa, relembra Theo.
- Ela parecia tão delicada...
- Quando tinha crises de ciúmes, ela tinha a delicadeza de uma escarrada – de sangue.
- Sério?
- Não. Sem sangue.
- É... Confortante...
- Pra você ter uma ideia da cena, o relacionamento da gente parecia o de De Niro e Sharon Stone em Cassino.
- Ela era uma prostituta?
- Não, Belle, na verdade quis só ajudar na visualização das brigas.
- Uma baixaria louca, só que sem o glamour e a breguice de Las Vegas, certo?!
- Mas com o calor de Itabuna e Ilhéus. E com a combinação mais perigosa que existe.
- Whisky com o pó de pirilimpimpim?
- Não: tédio, dinheiro e carência.
- O que dá no mesmo, Theo. Você não precisa se justificar pra mim. O problema era o braite, não era?
- Era, mas parei de vez, você sabe. Falando nisso, lembra da primeira vez que você cheirou?
- Aham. Primeira e única – até hoje. Começamos com trechos de Scarface, depois revimos Bons Companheiros e Trainspotting. Nossa, que coisa mais clichê...
- Ah, Belle, a primeira vez de tudo é um clichê, nem que seja pelo fato de ser uma primeira vez. O que você pode comemorar é o lado positivo da coisa. Foi com seu namorado, que você já conhecia bem até antes de namorar e, pra completar, você não só sobreviveu às carreiras como, o mais importante, não teve rebordosa. O que um bom pó e um bom namorado não fazem, hein?!
- Sexo.
- Ahn?
- Nada. Por falar em drogas, Hair, como tá?
- Tá bem. Até hoje tá guardado com o bilhetinho escrito por você. Ainda lembro daquela quase poesia, quer que eu diga?
- Não, se até você chama aquilo de quase poesia, melhor não.
- Belle, ninguém sabe falar de amor com 18 anos. A gente sabe, no máximo, querer saber.
- Isso é verdade. Mistura a insegurança e inconseqüência de um com a dependência do outro. Tudo culpa da idade – ou da falta dela.
- Você foi completamente rodrigueana agora.
Theo sabe que foi exatamente ele quem apresentou a Isabelle as melhores coisas de Nelson (sem piadas cretinas), mas acha desnecessário lembrá-la. Seu telefone ajuda e toca.
- Oi... tudo bem... parei pra tomar um suco aqui, tô indo pra o correio... eles foram lá em casa, mas não tinha ninguém, aí preciso passar lá hoje pra pegar o livro... tá bom, tá bom... quando chegar em casa te ligo... beijo...
- Quem era?, pergunta Isabelle.
- Jesus.
- Eu preferia você hétero.
- Você continua com um radar infalível... A gente tá ficando há pouco tempo, ela faz comunicação...
- Você nunca conseguiu namorar com ninguém de Direito, não é?!
- Não. Quando a mulher parecia perfeita, tinha namorado. Mas quando não tinha, uma com quem tive um caso de uns três meses, era obcecada por um ménage.
- Com dois homens ou duas mulheres?
- Dois homens: Kelsen e Miaille. Se um dos dois faltasse, Reale. Eu era só a quarta opção.
- Melhor do que nada, ela poderia ter Pontes de Miranda à sua frente.
- Mas aí, por tabela, ela teria também Igor à frente. E você enciumaria. E o que poderia ser uma orgia viraria uma guerra. Sou pacifista, antes meio corno do que quase assassinado.
- Se ela viesse pra cima de Igor...
- Acho que até Igor acharia um porre tanta conversa de Direito.
- Não sei não, tenho menos ciúme da ex-noiva dele do que de Pontes de Miranda.
- Ah, quieta com isso, Igor é um cara correto. Ele ainda tá na Igreja Batista?
- Não, ele se converteu ao ateísmo. Graças a Deus.
- Você tá de brincadeira...
- Nope...
O celular de Isabelle toca.
- Falando no santo..., comenta ela, que atende. Oi, amor... tô aqui no... ah!.. Ah... tá? Cadê?! Ah, pronto... pronto...
Igor aponta na rua, Isabelle o percebe.
- Olha ele ali...
- É, ele falou que estava aqui em frente. Tenho que ir, Theo.
- Ok, Belle, vai lá. Dê notícias.
- Pode deixar... fica bem... Beijo.
- Beijo, Belle, se despede ele, que acena para Igor. Eles terminam o dia em casa – cada um na sua, digo. Isabelle ainda não tem certeza do que fará, Theo vai rever Bons Companheiros. Gostaria de saber o que Scorsese acha disso.

Nunca anacrônico
Theo e Isabelle roubaram seus nomes dos irmãos (interpretados pelos – ali nem tão – ótimos Louis Garrel e Eva Green) em Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci. Confesso não ser entusiasta xiita do filme, mas é inegável que, embora a ideia e o romantismo ingênuo às vezes não sejam tão bem executados, ele tem seus momentos – e cresceu muito quando revisitado.

Os outros
Hair (1979), de Milos Forman, é um daqueles filmes que faço de tudo para, além de assistir, não comentar. E isto é uma das poucas coisas que posso falar sem me constranger. Não vejo há três meses – é preocupante.
Martin Scorsese, por sua vez, é um dos que consegue a façanha de nem sempre me cativar de primeira, mas atingir em cheio quando revisto. Cassino é muito bom, e Bons Companheiros, bem, é uma aula de cinema, além de uma delícia de filme. Que todo publicitário tenta fazer. E muito cineasta (com ou sem aspas), também tenta imitar.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (também impressa) de outubro do Jornal Direitos - http://www.jornaldireitos.com.br/.

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