sábado, 30 de maio de 2009

O Lutador*



Um instinto de sobrevivência

Mais do que indiretamente sobre, para e (por que não?) de Mickey Rourke, O Lutador (The Wrestler, EUA/ França, 2008), de Darren Aronofsky, é um filme afortunado. Graças a coincidências e escolhas duvidosas que se provaram acertadas, o resultado final chega potencializado e seus problemas quase viram purpurina – o que vem à mente pelos personagens. No fim das contas, da pré-produção à primeira sala onde foi exibido, O Lutador consegue falar com honestidade e beleza sobre renascimento e determinismo (em níveis diferentes), e funciona justamente por inicialmente não ter a pretensão de ter que defender (e depender de) uma coisa ou outra.

A história gira em torno de Randy ‘The Ram’ Robinson (Mickey Rourke), um ex-lutador de luta livre que brilhou nos anos 80 e hoje vive do trabalho em um super-mercado, antes de, nos fins de semana, participar de lutas que não são mais tão gloriosas ou rentáveis. Vive com pouco dinheiro (cobra oito dólares por um autógrafo, por exemplo), é solitário e tende à auto-destruição. Quem mais se aproxima de influenciar suas atitudes são duas mulheres: sua filha, Stephanie (Evan Rachel Wood – Aos Treze, Across the Universe) e uma stripper, cujo nome de guerra é Cassidy (Marisa Tomei – Entre Quatro Paredes, Meu Primo Vinny).

Para nos mostrar estes seus personagens, Aronofsky (Pi, Réquiem para um Sonho, Fonte da Vida) muda radicalmente de estilo. Nos seus três longas anteriores, sua vontade de aparecer com o jeito próprio de filmar e editar sempre foi (intencionalmente ou não) maior que sua capacidade de falar sobre seres humanos. Quando o roteiro partiu dele, em Pi (1998) e Fonte da Vida (2006), a escrita impressionou mais pelo tom confuso que enigmático.

Em O Lutador, vemos não apenas a primeira vez que Aronofsky pega um roteiro pronto (ele co-adaptou Réquiem), como o afastamento quase que definitivo daquele mesmo diretor que em Fonte da Vida parecia ter concluído o que começou em Pi: o curso de filosofia MTViana. Ele dá adeus ao corta-corta (ou pelo menos ao corta-corta medido em frames), adeus aos clipes dentro do filme (aqui ele tem várias oportunidades de fazê-lo), e adeus às imagens narcisistas e egocêntricas (como em Fonte da Vida), que simplesmente não se davam com o filme. Ao mesmo tempo, dá as boas vindas ao manual de um tipo do cinema independente dos últimos anos, da um pouco tremida câmera na mão aos jump-cuts – estes, embora geralmente funcionais, às vezes assumem um tom excessivo que passa a impressão de um Aronofsky (mesmo num ritmo mais cadenciado) que talvez quisesse manter parte de sua assinatura – ou pelo menos de sua rubrica.

O curioso é que, apesar das pitadas cavalares desse cinema independente e homeopáticas do antigo Aronofsky maneirista, os melhores momentos do filme vêm da direção básica dos atores (fortalecida mais pelo plano-sequência e pelo campo x contracampo do que pela câmera na mão ou por jump-cuts) – o que está longe de ser fácil, e no que ele já provou ser bom em Réquiem. Evan Rachel Wood e principalmente Mickey Rourke e Marisa Tomei transbordam talento, carisma e naturalidade em personagens fadados ao sofrimento, cada um à sua maneira, mas não por um comodismo artificial, e sim por circunstâncias (e atuações) que tornam o determinismo palpável e convincente. Eles (especialmente os dois últimos) querem viver mas precisam sobreviver, querem os anos 80 mas vivem nos anos 2000 – com uma melancolia (sem charme) dos anos 90, reforçada pelo anacronismo (ideal X real) do conflito de épocas que habitam diferentes galáxias.


“O mundo não está nem aí pra mim” (fala de “The Ram”), por exemplo, a princípio soa como um choro de defesa à preguiça. Aronofsky, no entanto, depois de bruscas quedas de ritmo nas duas primeiras partes do filme, sutil e progressivamente libera a emoção para o seu personagem – e o filme cresce. Quando Mickey Rourke (já indissociável de Randy a essa altura) diz essas palavras, ele está no meio de um bem trilhado caminho em busca da única coisa que realmente o satisfaz, que o aproxima de uma condição de felicidade minimamente honesta e muito pessoal.

Apesar deste estado quase catártico do final, é impossível não lembrar de pelo menos duas coisas que infelizmente saltam aos olhos: o chefe mala e caricato que é assim apenas para ocasionar uma virada mais adiante, e um dos meninos vizinhos que joga vídeo-game com Randy, que se por um lado ajuda no estudo e construção do personagem, tem sua aparição (e toda a cena) forçada – ou sem a mesma naturalidade do resto.

Ainda assim, numa época em que muito se discute (e se quebra) limites entre “realidade” e “ficção”, tem-se aqui um expoente de ficção assumida que pode ser adaptada à biografia de gente dentro e fora do filme. Nele, em meio a um renascimento [contraste de antes e depois do filme maior para Rourke (é claro), Aronofsky e até Tomei, em ordem decrescente], muitos parecem pedir desculpas pelo passado antes de seguirem seus respectivos caminhos. Um retrato dolorido e falho, mas também expressivo e (se é que isso é possível) calculadamente apaixonado.

Filme: O Lutador (The Wrestler, EUA/ França, 2008)
Direção: Darren Aronofsky
Elenco: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood.
Duração: 111min

8mm
Paixão

Muita gente acha (não faltam textos por aí) que O Lutador é, no fim das contas, sobre o cinema. Acho que parte dessa defesa, mais do que qualquer outra coisa, vem da identificação de quem ama ou tenta amar algo (o cinema, no caso) de um jeito semelhante ao de Randy, cujo instinto de auto-preservação fica poeticamente de lado quando sua verdadeira paixão pede passagem. O filme deixa uma sensação parecida, de paixão sobre um personagem e por uma coisa (apesar de não somente) – embora em tom e com “motivos” completamente diferentes –, à que tive em momentos de Maradona por Kusturica (2008), de Emir Kusturica. Mas aí já é assunto pra outro texto.

Filmes da semana:
1. Vício Maldito (1962), de Blake Edwards
2. Noites com Sol (1990), de Paolo e Vittorio Taviani
3. Beijos Proibidos (1968), de François Truffaut
4. Guerra dos Mundos (2005), de Steven Spielberg
5. Maradona por Kusturica (2008), de Emir Kusturica
6. Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock
7. O Lutador (2008), de Darren Aronofsky
8. O Grande Sinal (1921), de Edward F. Cline e Buster Keaton (curta)
9. Guernica (1978), de Emir Kusturica (curta)
10. Dublê de Corpo (1984), de Brian de Palma
11. Cova Rasa (1994), de Danny Boyle
12. Amor à Queima-Roupa (1993), de Tony Scott

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 23 de maio de 2009

Anjos e Demônios*



Enigma sem mistério

As duas instituições mais onipresentes no mundo ocidental são os Estados Unidos e a Igreja Católica. Em maior ou menor escala, todos os países das bandas de cá têm um ranço histórico ou atual intimamente ligado a um deles – quando não a ambos. Seja pela meritocracia ou pela teocracia, o mundo defendido pelos dois é seguido à risca por alguns, e rejeitado violentamente por outros. Anjos e Demônios (Angels & Demons, EUA, 2009), filme de Ron Howard, é antologia ruim do que de ainda pior ambos oferecem.

A fórmula é basicamente a mesma de Código da Vinci (2006), outro best-seller do mesmo autor Dan Brown e dirigido também por Ron Howard. Ou seja, mais uma história referente aos Iluminati e ao passado pecaminoso e obscuro da igreja. Do começo, quando o papa morre, até as mais de duas horas depois, o Vaticano vive um perigo que só aumenta com passar do tempo – o hipotético atentado tem hora certa pra acontecer. O Professor Robert Langdon (Tom Hanks) busca pistas para cumprir sua missão através de sinais que são mostrados via o já conhecido (e às vezes irritante) didatismo de Howard. Como de costume, e especialmente como aconteceu em Código da Vinci, seus personagens não conversam, eles ditam a história. O caráter hermético do tema é simplificado e transformado em uma aula de alfabetização.

Enquanto ouvimos a trama letra por letra, Roma parece crescer em progressão geométrica, com Tom Hanks representando um joão bobo bêbado, andando em círculos sem encontrar o que interessa. Como se não bastassem essas 20 mil léguas romanas, o filme é enxertado de cenas pretensamente engraçadas que, para convocar um riso alaranjado, carregam consigo sequências demoradas e descartáveis – a da falta de ar é o exemplo mais claro. Se esses momentos amenizam o clima de um filme tão longo, paradoxalmente contribuem demais para deixá-lo com uma gordura bem visível.

É inegável, no entanto, que as portas abertas pelos supostos enigmas ajudam, e alguns deles realmente funcionam como tal. Se adicionarmos aí o medo causado pela iminência de um ataque ao Vaticano, a quantidade de pessoas envolvidas, e em como entrelaçar essas histórias, bingo: um suspense meia-boca.

Anjos e Demônios não é um suspense clássico, e sim um filme de serial killer – ou de vários, se preferir. Pela busca e pelas mortes, dialoga com Seven, por exemplo. Mas Howard não consegue trabalhar com o ritmo de um thriller, que é do que seu filme mais se aproxima de acertar. Sabemos e percebemos tudo, ou pelo menos tudo que poderia causar um mínimo de tensão se não soubéssemos.

Pode-se dizer que há espaço para certa imaginação (deles) apenas na reviravolta final. Nela, graças à capacidade hollywodiana de defender um happy ending heróico, a aparente falta de vergonha do desfecho traz uma irresistível ânsia de vomito. Até percebermos que o final ainda não é esse. E que na verdade as coisas não são o que parecem.

O porém é que, se por um lado os roteiristas Akiva Goldsman (antigo colaborador de Howard) e David Koepp (que vai pro céu por adaptar O Pagamento Final (1993), de Brian de Palma) brincam com a gente ao trazer a tona a questão de aparência, essa brincadeira se torna meio óbvia provavelmente graças a Ron Howard e à sua mania de nunca tirar a mão da cabeça de seu espectador.

Até o término do filme, ele tem duas oportunidades de chamar os créditos com uma ironia que poderia dar um fatality na igreja e ainda manter a classe. Mas, em se tratando de Ron Howard (e de todos os milhões envolvidos), a coisa não pode ser assim. Com seu jeito ímpar de filmar (e para evitar esse caminho), ele pelo menos mantém o respeito pela maioria de seu público: os sacos de pipoca.

Filme: Anjos e Demônios (Angels & Demons, EUA, 2009)
Direção: Ron Howard
Elenco: Tom Hanks, Ewan McGregor, Ayelet Zurer, Stellan Skarsgård.
Duração: 138min

8mm
À espera do outubro vermelho

“Somos franceses, respeitamos os cineastas. (...) Eu faço filmes para o planeta Terra. E Cannes representa isso”. É verdade que as duas frases trazem um romantismo anabolizado. Mas é inegável que nenhuma outra nacionalidade ou cidade se encaixaria melhor nos dois casos. Assim como o autor das frases pode levar espanto a alguns: o americaníssimo Quentin Tarantino.
Pra ficar claro, a primeira frase é da personagem Shosanna (citação do crítico-cineasta Kleber Mendonça Filho), presente no mais novo filme de QT, o “Bastardos Inglórios”, que concorre em Cannes – estreia no Brasil prevista para outubro. E a segunda veio na coletiva de imprensa do filme, dita pelo próprio diretor, cuja sinceridade (pela obra e pelo que diz) não parece aqui questionável.
Primeiro Ron Howard, agora Quentin Tarantino – praticamente no mesmo texto, com perdão pela heresia. Dá pra imaginar dois caras tão representantes de um país, e ao mesmo tempo tão diferentes, tão expoentes de lados distintos do talento?

Filmes da semana:
1. Fonte da Vida (2006), de Darren Aronofsky
2. O Outro Lado da Cama (2002), de Emilio Martínez Lázaro
3. Zona do Crime (2007), de Rodrigo Plá
4. Olho na Nuca, O (2001), de Rodrigo Plá (curta)
5. Gotas de Sangue (1984), de Joel (e Ethan) Coen
6. Aguirre – A Cólera dos Deus (1972), de Werner Herzog
7. Ao Mestre com Carinho (1967), de James Clavell
8. Anjos e Demônios (2009), de Ron Howard (cinema)
9. Muito Além do Jardim (1979), de Hal Ashby
10. O Destino Bate à Sua Porta (1981), de Bob Rafelson
11. Querelle (1982), de Rainer Werner Fassbinder

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 16 de maio de 2009

Velozes e Furiosos 4*



Tão lento quanto humano

Mais do que um filme de ação, Velozes e Furiosos 4 é um blockbuster, “diferenciado” por ser uma franquia, e mais específico por ser basicamente sobre carros (embora boa parte dos blockbusters não seja sobre coisa alguma, é menor o número deles que são assumidamente sobre seres inanimados). É um produto para uma fatia bem própria dentro de uma gigantesca massa amorfa, que mesmo assim deve ser atingida, já que ela é o alvo das setas que são todos os projetos da família dos arras(t)a-quarteirões. Ou seja, visualizar um toque realmente pessoal numa coisa dessas é o mesmo que, em pleno São João, esperar que Papai Noel desça da chaminé para assassinar o coelhinho da páscoa – a barrigadas.

Ponderados esses pontos, e imaginadas todas as possíveis concessões, o que dizer do filme de Justin Lin? A primeira expectativa é pelas cenas de ação. A inicial, além da megalomania para encaixar os efeitos especiais e dublês, parece realmente decupada e bem cuidada, como se tivesse sido filmada e editada por um Macintosh – e isso é um elogio. Diferente das outras partes semelhantes no resto do filme, ela é inteligível. Ali sentimos se não o talento, um mínimo de timing e respeito para com nossa capacidade de raciocínio. Pena que essa consideração acaba por aí. Para resumir as outras cenas de corrida, melhor dizer que os cortes são mais velozes e desrespeitosos que os carros – e a cabeça passa a ser violentada. Aconselho paracetamol. Na falta dele, tome paciência.

Irregular e agressivo o suficiente nos seus 40 minutos normais e finais, Velozes e Furiosos investe mais outra hora de introdução (menos enxuta que Vin Diesel) em algo que mais parece um filho bastardo de Need For Speed com GTA – há tempos não me atualizo, é possível que tenha algo mais parecido com isso aqui. Tem-se uma história (cuja superficialidade e fragilidade do fio narrativo extrapola o padrão da série – apesar de o primeiro ser redondinho, difícil dizer que é bom), uma missão, corridas, estradas e passagens secretas: tudo dentro de um mundo maravilhoso, que é criado e convence – embora muito mais como um jogo do que como cinema.

O último corte do filme é o mais simbólico. Nele, o carro vem em alta velocidade de encontro à câmera e a tela fica preta, como se fosse engolida pelo super-hiper-mega-power-veículo. É a coerência que pede a série, implorando pela continuação de algo que se aproxima muito menos de um filme do que do reflexo de seu tempo. São espasmos de hiperatividade em quantidade e com pressa suficientes para nada na tela ser questionado – ou passar um sentido, uma sensação, o que for. O que passa são os carros, e o grau de (falta de) humanidade esperado. Há quem goste.

Filme: Velozes e Furiosos 4 (Fast and Furious – EUA, 2009)
Direção: Justin Lin
Elenco: Vin Diesel, Paul Walker, Jordana Brewster, Michelle Rodriguez.
Duração: 107 minutos

8mm
Cartão postal
Levando em conta apenas aquilo com que tenho um mínimo de contato, acho que somente o futebol é tão masculino (e quase sempre machista) como o automobilismo – e seus derivados. Em Velozes e Furiosos 4, vemos novamente aquele excesso de amarelo-desgraça, calor-turismo, bundas e peitos: tudo (quando com essas características) passado em países latinos, onde moram os sacanas e as gostosas, que ficam com os sacanas enquanto esperam o super-homem num tom azul-riqueza, vindo “dusistêite” – jogo de cores de Traffic vem a mente.
Em entrevista recente, Paul Walker falou que o Brasil seria provável palco para filmagens da continuação da franquia. Visualize: o resultado do cruzamento da Globeleza com Gisele Bündchen, somado com o Maracanã, o Rally dos Sertões e a Rocinha. Pode entrar na conta ainda o túnel Ayrton Senna, em São Paulo, cidade cujo principal cartão postal – se a referência for um “interessante” documentário britânico sobre o ex-piloto – é o corcovado.

Filmes da semana:
1. Noites Brancas (1957), de Luchino Visconti
2. Cão sem Dono (2007), de Beto Brant e Renato Ciasca
3. Sexo entre Amigos (1999), de Sam Miller
4. Vida de Solteiro (1992), de Cameron Crowe
5. Velozes e Furiosos (2009), de Justin Lin (cinema)
6. Afinidades Eletivas (1996), de Paolo e Vittorio Taviani
7. Cama de Gato (2002), de Alexandre Stockler

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Par ou ímpar (ou de sexta a Domingos)*

Paulo e Edu acabam de chegar num bar. Sentam e chamam o garçom. Pedem uma cerveja e esperam.
- ... Glauber Rocha... – divaga Paulo
- Sim... – rebate Edu
- ... Rogério Sganzerla...
- Que que tem?
- ... Domingos de Oliveira...
- Bom também.
- ...Nelson Pereira dos Santos... – continua Paulo, olhando as nuvens. Num céu azul.
- Tá escalando sua seleção brasileira é?
- ... Truffaut... Godard...
- Ok, fomos pra França. Lindo. Você sabe que não sou ufanista nem xenófobo...
- ... Orson Welles... Chaplin... – a mente de Paulo se aproxima da era de Aquário.
- Que diabos é isso, hein?! Seu “pai-nosso” é?
- Aliás, Orson Welles e Chaplin vão lá pra trás.
- Tá, tá... eu também sou politeísta, mas não me importo com a ordem – diz Edu, que procura o garçom. Não acha.
- Eles não eram só aquela coisa de diretor autor. Eram mais – retorna Paulo.
Edu pensa. É interrompido.
- Eles também faziam outras coisas, escreviam outras coisas... pensavam, sabe?!
- Nelson Pereira dos Santos?
- O cara tá na Academia Brasileira de Letras.
- Não sabia.
- Não sabia?, se indigna Paulo. Desde 2006 ele tá lá!
- Ah, desculpa... tem muito tempo que não ligo pra lá.
- Você sabe quem é o patrono da cadeira dele?
- Quem? Mario Peixoto? Machado de Assis? Sei lá. Shakespeare?
- É. Shakespeare. Que pegou a cadeira de Homero, no ano 13 d.C. – Homero tava na décima reencarnação, e Shakespeare no primeiro de seus 18 ensaios pra enfim nascer.
- Sempre desconfiei disso – fala Edu, todo serelepe.
- Só que aí veio Castro Alves. Ele não só juntou o talento de Shakespeare e Homero, como roubou a cadeira 7 da Academia Brasileira de Letras. Levantou em 2006 porque tava entediado e queria mudar de assento, que o inspirasse mais. Aí Nelson Pereira... pluft! Aproveitou.
- A gente falava de quê mesmo?
- Não sei, sua burrice me desconcentra – alega Paulo.
- Shakespeare... Chaplin... Inglaterra! O Campeonato Inglês tá bom, hein? Sou Arsenal, mas esse ano dá Manchester ou Liverpool. Você aposta em quem?
- Não, a gente não falava de Inglaterra, nem de futebol. A gente falava de gente que tinha algo além do talento.
- Hum... tipo Nick Hornby. Ele escreve também, o filme Alta Fidelidade é baseado no livro dele. Mas aí é o algo além, o talento dele é torcer pelo Arsenal. Você já leu Febre de Bola?
- Não, nem quero – frisa Paulo. Saia da Inglaterra, desça o canal da Mancha.
- Hum... ok... você quer falar de Godard? De Domingos de Oliveira?
- Isso, deles que falava.
- As únicas coisas que os dois têm em comum é o cinema e o sexo masculino, como é que você quer falar sobre eles?
- Justamente! Têm em comum o cinema, que é do que a gente tá falando. E, como disse, eles fazem outra coisa, são multi-uso. O Domingos, mesmo, atua bem, escreve peças, e dirige com uma sutileza fina – se é que existe sutileza grossa. De qualquer jeito, parece que, na hora da gravação, quando ele tem uma crise extrema de prolixidade, ele diz pros atores: “troquem ideia”.
- Faz sentido. Mas não dá pra dizer o mesmo de Godard..., lembra Edu.
- É... mas Godard é gênio, já escreveu coisas sensacionais sobre cinema e o pensar cinema. Problema é que ele sabe falar coisas desagradáveis e fazer filmes desagradáveis. Mas, acontece. Já Domingos de Oliveira é um cara que parece estar sempre rindo da vida, que ri dele. E com ele. Os dois são amantes.
- Não, Paulo. Domingos de Oliveira deixou todas as mulheres do mundo pra ficar com Leila Diniz. Você não viu o filme? Só que ali era Paulo, interpretado por Paulo José – e Leila Diniz ela mesma.
- Mas Leila não se separou de Domingos antes do filme ser lançado? Ah, não importa. O que importa é que ela faz falta uma danada, hein?!
- Pois é, filmes como Todas as Mulheres do Mundo também.
- Taí, eu duvido que você ache, na história do cinema, uma disputa de par ou ímpar tão inusitada, tão genial como aquela?
- Você foi super pretensioso agora.
- Ah, Edu, saber ser pretensioso, além de atrair a atenção, é charmoso pelo ar de cobiça alcançável. Mas não fuja da pergunta. Já viu ou não?
- Não, não que eu me lembre. Mas, é aquela coisa, a quantidade de filmes a serem vistos é sempre maior que a dos filmes que a gente já viu. Então, não dá pra confirmar. De qualquer jeito, a gente parou em Domingos de Oliveira, e você não falou do resto. Você queria dizer o que mesmo?
- Ah, sei lá, tava divagando – diz Paulo.
- Jura? Nunca vi essa cena.
- Mas a cena do par ou ímpar...
- Bem, umas 20 vezes. É ótima mesmo...
- Deu vontade de rever o filme até. Acho que é o que vou fazer quando chegar em casa.
O garçom chega com a cerveja, abre e despeja no copo dos dois.
- É, mas antes tem ela aqui. Brinde cá, diz Edu.
Os dois brindam, Paulo fala.
- Que a sexta-feira traga a algum cinema decente algum filme decente. Ou indecente. Mas que seja bom.
- Amém!

Elas ficam
Os nomes Paulo e Edu são retirados dos personagens de Todas as Mulheres do Mundo (1967), de Domingos de Oliveira. Ali, Paulo José interpreta Paulo, e Flávio Migliaccio é Edu.
Já Leila Diniz, a Maria Alice do filme, é só uma das musas no nosso cinema que deviam ter ficado mais um pouco por aqui – pensando como viúvo. Se atuassem pessimamente, pelo menos traziam uma aura boa pra a tela. Além dela, que partiu aos 27 anos, bom lembrar de Adriana Pietro (de O Casamento, 1976, de Arnaldo Jabor), que faleceu aos 25, e Cláudia Magno (de Menino do Rio, 1982, de Antonio Calmon), aos 35. O bom é que os filmes ficam.

Ah, é primavera no Mediterrâneo
Quentin Tarantino, Lars Von Trier, Pedro Almodóvar, Ang Lee, Michael Haneke, Gaspar Noé, só pra falar do que mais gosto e conheço. E só um lugar pode juntar tanta gente boa e diferente num só evento: Cannes.
Todos eles estão com filmes (divulgados no último dia 23) na mostra competitiva do festival, ainda recheado de coisa boa fora dela – mesmo sem brasileiro, quem achar a lista ruim merece ficar um mês sem ver filme. De 13 a 24 de maio, Cannes me espera. E fica triste, já que eu não vou. Mas aceito propostas.

* Coluna de cinema¹ originalmente publicada na edição de maio do jornal Direitos – http://www.jornaldireitos.com.br/.
¹ Ainda não batizada, embora 'Cinebar' se aproxime do que penso. Sugestões não fazem mal.

sábado, 9 de maio de 2009

Sozinho contra todos*



Perigo: ser humano à vista

É complicado escrever sobre o choque causado por Sozinho contra todos (Seul contre tous – França, 1998), de Gaspar Noé, sem entrar nos seus desdobramentos. Isso porque muito do saldo da experiência passa pelo absurdo de seus últimos vinte minutos, depois de vermos a tela ficar preta e entrar em assustadora contagem regressiva: “Você tem 30 segundos para deixar a sala”. Quando chegamos aos cinco segundos, vemos piscar “perigo”. Mesmo revisto, o que vem depois continua sendo no mínimo ofensivo.

Gaspar Noé foi catapultado para o grande público com Irreversível (2002), onde temos a famigerada cena de estupro sem cortes. Mas quatro anos antes ele já exercitava o seu sentido iconoclasta de adepto do “cinema extremo” – Michael Haneke e Lars Von Trier são outros exemplos –, no qual aspas pedem passagem sempre que o desagradável vem à tona. Se normalmente a pergunta é “por que ou para que filmar algo”, muitas vezes o assunto dessa corrente é “por que não?”.

Por outro lado, mais do que um exercício técnico ou estético, Sozinho contra todos explora a potencialidade obscura do ser humano. Com a delicadeza de um Tiranossauro Rex faminto em frente à sua refeição, Noé fala sobre viver e sobreviver, genética e biologia. Isso via seu personagem, um açogueiro que perdeu mulher, filha e emprego, além de ir preso por assassinar quem ele pensou que tivesse violentado sua filha, que na verdade tinha menstruado pela primeira vez – essa história começou no média-metragem Carne, de 1991.

A partir daí, o enfoque é cada vez maior no personagem, o que leva o filme a uma vala comum de frases feitas sobre egoísmo e o pessimismo antropológico. Por outro lado, o ideal de um amor a si mesmo a cima de todas as coisas (com ênfase em “acima de todas as coisas”) é bem levado até o fim, quando Noé despeja no mesmo vaso ingredientes que podem despertar sentimentos que vão de um alívio redentor ao mais límpido nojo.

Essa capacidade de trabalhar com um único e agressivo ponto de vista e ainda assim dar a possibilidade da relativização é outra questão positiva em Sozinho contra todos. Enquanto seu personagem se desespera e pensa (via narração) sem parar, seu raciocínio se mostra afetado pela incessante tentativa de sobreviver e pouco traz de substancial e único de verdade. Quando age, ou vemos como poderia agir se seguisse parte de seus instintos, percebemos como o lado influenciado pelas circunstâncias pode levar a atitudes que, quando não relativizam a moral, simplesmente a ignoram.

Noé explora com força o que não é dito, mas pensado, a coexistência entre a moral e o ser – embora às vezes abuse de frases na tela, o que deixa a impressão de didatismo demais e audiovisual de menos. É verdade que muita coisa (Taxi Driver é um exemplo) já visitou território semelhante, mas Sozinho contra todos, se não funciona em tantos níveis, pode dizer que escolhe um campo bem menor para poder explorá-lo – ou pisoteá-lo –, e o faz com uma falta de cerimônia pouco antes vista. “Vejam do que ele, aqui representando o ser humano como um todo, é capaz. E vejam o que EU acho e como EU mostro isso”, grita Noé. Apesar da irregularidade, o nível que ele atinge é tão extremo e pouco acessível que dá vontade de amplificar sua voz com sessões abertas em praças públicas.

Filme: Sozinho contra todos (Seul contre tous – França, 1998)
Direção: Gaspar Noé
Elenco: Philippe Nahon, Frankye Pain, Blandine Lenoir
Duração: 93 minutos

8mm
Carência

São 18h15. Visto a camisa e apanho a carteira. Bebo água, confiro tudo, bato a porta. São 18h18, o filme é 18h40. De casa até o guichê do cinema, a pé, são de 15 a 20 minutos – tudo depende, é claro, do filme.
Ainda no primeiro terço do caminho, lembro que deixei o celular carregando – não tem ninguém em casa. Corro, pego, volto a onde estava quando a memória assumiu ser perversa. São 18h25. Acelero o passo, chego – com o fôlego de um dependente de nicotina sem fumar, peço o ingresso.
São 18h39. A sala está cheia, consigo sentar e esperar – sessão atrasa. As luzes se apagam, começam os trailers. O filme é X-Men – Origens: Wolverine. Dublado.

Filmes da semana:
1. Em Paris (2006), de Christophe Honoré
2. Amador (1979), de Krzysztof Kieslowski
3. A Marca da Maldade (1958), de Orson Welles
4. On Native Soil (2006), de Linda Ellman
5. X-Men – Origens: Wolverine (2009), de Gavin Hood (cinema)
6. Sozinho contra todos (1998), de Gaspar Noé
7. Uma Mulher sob Influência (1974), de John Cassavetes

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 2 de maio de 2009

Vistos e/ou revistos durante a semana:

* Perfume de Mulher (1974), de Dino Risi
* Ele Não Está Tão a Fim de Você (2009), de Ken Kwapis (cinema)
* New Rose Hotel (1998), de Abel Ferrara
* A Pantera Cor de Rosa (1963), de Blake Edwards
* A Noite dos Mortos Vivos (1968), de George A. Romero
* Amarás a Deus acima de todas as Coisas (1988-90), de Krzysztof Kieslowski (média-metragem parte do “Decálogo”)
* Honrarás a teu Pai e a tua Mãe (1988-90), de Krzysztof Kieslowski (média-metragem parte do “Decálogo”)