Um instinto de sobrevivência
Mais do que indiretamente sobre, para e (por que não?) de Mickey Rourke, O Lutador (The Wrestler, EUA/ França, 2008), de Darren Aronofsky, é um filme afortunado. Graças a coincidências e escolhas duvidosas que se provaram acertadas, o resultado final chega potencializado e seus problemas quase viram purpurina – o que vem à mente pelos personagens. No fim das contas, da pré-produção à primeira sala onde foi exibido, O Lutador consegue falar com honestidade e beleza sobre renascimento e determinismo (em níveis diferentes), e funciona justamente por inicialmente não ter a pretensão de ter que defender (e depender de) uma coisa ou outra.
A história gira em torno de Randy ‘The Ram’ Robinson (Mickey Rourke), um ex-lutador de luta livre que brilhou nos anos 80 e hoje vive do trabalho em um super-mercado, antes de, nos fins de semana, participar de lutas que não são mais tão gloriosas ou rentáveis. Vive com pouco dinheiro (cobra oito dólares por um autógrafo, por exemplo), é solitário e tende à auto-destruição. Quem mais se aproxima de influenciar suas atitudes são duas mulheres: sua filha, Stephanie (Evan Rachel Wood – Aos Treze, Across the Universe) e uma stripper, cujo nome de guerra é Cassidy (Marisa Tomei – Entre Quatro Paredes, Meu Primo Vinny).
Para nos mostrar estes seus personagens, Aronofsky (Pi, Réquiem para um Sonho, Fonte da Vida) muda radicalmente de estilo. Nos seus três longas anteriores, sua vontade de aparecer com o jeito próprio de filmar e editar sempre foi (intencionalmente ou não) maior que sua capacidade de falar sobre seres humanos. Quando o roteiro partiu dele, em Pi (1998) e Fonte da Vida (2006), a escrita impressionou mais pelo tom confuso que enigmático.
Em O Lutador, vemos não apenas a primeira vez que Aronofsky pega um roteiro pronto (ele co-adaptou Réquiem), como o afastamento quase que definitivo daquele mesmo diretor que em Fonte da Vida parecia ter concluído o que começou em Pi: o curso de filosofia MTViana. Ele dá adeus ao corta-corta (ou pelo menos ao corta-corta medido em frames), adeus aos clipes dentro do filme (aqui ele tem várias oportunidades de fazê-lo), e adeus às imagens narcisistas e egocêntricas (como em Fonte da Vida), que simplesmente não se davam com o filme. Ao mesmo tempo, dá as boas vindas ao manual de um tipo do cinema independente dos últimos anos, da um pouco tremida câmera na mão aos jump-cuts – estes, embora geralmente funcionais, às vezes assumem um tom excessivo que passa a impressão de um Aronofsky (mesmo num ritmo mais cadenciado) que talvez quisesse manter parte de sua assinatura – ou pelo menos de sua rubrica.
O curioso é que, apesar das pitadas cavalares desse cinema independente e homeopáticas do antigo Aronofsky maneirista, os melhores momentos do filme vêm da direção básica dos atores (fortalecida mais pelo plano-sequência e pelo campo x contracampo do que pela câmera na mão ou por jump-cuts) – o que está longe de ser fácil, e no que ele já provou ser bom em Réquiem. Evan Rachel Wood e principalmente Mickey Rourke e Marisa Tomei transbordam talento, carisma e naturalidade em personagens fadados ao sofrimento, cada um à sua maneira, mas não por um comodismo artificial, e sim por circunstâncias (e atuações) que tornam o determinismo palpável e convincente. Eles (especialmente os dois últimos) querem viver mas precisam sobreviver, querem os anos 80 mas vivem nos anos 2000 – com uma melancolia (sem charme) dos anos 90, reforçada pelo anacronismo (ideal X real) do conflito de épocas que habitam diferentes galáxias.
A história gira em torno de Randy ‘The Ram’ Robinson (Mickey Rourke), um ex-lutador de luta livre que brilhou nos anos 80 e hoje vive do trabalho em um super-mercado, antes de, nos fins de semana, participar de lutas que não são mais tão gloriosas ou rentáveis. Vive com pouco dinheiro (cobra oito dólares por um autógrafo, por exemplo), é solitário e tende à auto-destruição. Quem mais se aproxima de influenciar suas atitudes são duas mulheres: sua filha, Stephanie (Evan Rachel Wood – Aos Treze, Across the Universe) e uma stripper, cujo nome de guerra é Cassidy (Marisa Tomei – Entre Quatro Paredes, Meu Primo Vinny).
Para nos mostrar estes seus personagens, Aronofsky (Pi, Réquiem para um Sonho, Fonte da Vida) muda radicalmente de estilo. Nos seus três longas anteriores, sua vontade de aparecer com o jeito próprio de filmar e editar sempre foi (intencionalmente ou não) maior que sua capacidade de falar sobre seres humanos. Quando o roteiro partiu dele, em Pi (1998) e Fonte da Vida (2006), a escrita impressionou mais pelo tom confuso que enigmático.
Em O Lutador, vemos não apenas a primeira vez que Aronofsky pega um roteiro pronto (ele co-adaptou Réquiem), como o afastamento quase que definitivo daquele mesmo diretor que em Fonte da Vida parecia ter concluído o que começou em Pi: o curso de filosofia MTViana. Ele dá adeus ao corta-corta (ou pelo menos ao corta-corta medido em frames), adeus aos clipes dentro do filme (aqui ele tem várias oportunidades de fazê-lo), e adeus às imagens narcisistas e egocêntricas (como em Fonte da Vida), que simplesmente não se davam com o filme. Ao mesmo tempo, dá as boas vindas ao manual de um tipo do cinema independente dos últimos anos, da um pouco tremida câmera na mão aos jump-cuts – estes, embora geralmente funcionais, às vezes assumem um tom excessivo que passa a impressão de um Aronofsky (mesmo num ritmo mais cadenciado) que talvez quisesse manter parte de sua assinatura – ou pelo menos de sua rubrica.
O curioso é que, apesar das pitadas cavalares desse cinema independente e homeopáticas do antigo Aronofsky maneirista, os melhores momentos do filme vêm da direção básica dos atores (fortalecida mais pelo plano-sequência e pelo campo x contracampo do que pela câmera na mão ou por jump-cuts) – o que está longe de ser fácil, e no que ele já provou ser bom em Réquiem. Evan Rachel Wood e principalmente Mickey Rourke e Marisa Tomei transbordam talento, carisma e naturalidade em personagens fadados ao sofrimento, cada um à sua maneira, mas não por um comodismo artificial, e sim por circunstâncias (e atuações) que tornam o determinismo palpável e convincente. Eles (especialmente os dois últimos) querem viver mas precisam sobreviver, querem os anos 80 mas vivem nos anos 2000 – com uma melancolia (sem charme) dos anos 90, reforçada pelo anacronismo (ideal X real) do conflito de épocas que habitam diferentes galáxias.
“O mundo não está nem aí pra mim” (fala de “The Ram”), por exemplo, a princípio soa como um choro de defesa à preguiça. Aronofsky, no entanto, depois de bruscas quedas de ritmo nas duas primeiras partes do filme, sutil e progressivamente libera a emoção para o seu personagem – e o filme cresce. Quando Mickey Rourke (já indissociável de Randy a essa altura) diz essas palavras, ele está no meio de um bem trilhado caminho em busca da única coisa que realmente o satisfaz, que o aproxima de uma condição de felicidade minimamente honesta e muito pessoal.
Apesar deste estado quase catártico do final, é impossível não lembrar de pelo menos duas coisas que infelizmente saltam aos olhos: o chefe mala e caricato que é assim apenas para ocasionar uma virada mais adiante, e um dos meninos vizinhos que joga vídeo-game com Randy, que se por um lado ajuda no estudo e construção do personagem, tem sua aparição (e toda a cena) forçada – ou sem a mesma naturalidade do resto.
Ainda assim, numa época em que muito se discute (e se quebra) limites entre “realidade” e “ficção”, tem-se aqui um expoente de ficção assumida que pode ser adaptada à biografia de gente dentro e fora do filme. Nele, em meio a um renascimento [contraste de antes e depois do filme maior para Rourke (é claro), Aronofsky e até Tomei, em ordem decrescente], muitos parecem pedir desculpas pelo passado antes de seguirem seus respectivos caminhos. Um retrato dolorido e falho, mas também expressivo e (se é que isso é possível) calculadamente apaixonado.
Filme: O Lutador (The Wrestler, EUA/ França, 2008)
Direção: Darren Aronofsky
Elenco: Mickey Rourke, Marisa Tomei, Evan Rachel Wood.
Duração: 111min
8mm
Paixão
Muita gente acha (não faltam textos por aí) que O Lutador é, no fim das contas, sobre o cinema. Acho que parte dessa defesa, mais do que qualquer outra coisa, vem da identificação de quem ama ou tenta amar algo (o cinema, no caso) de um jeito semelhante ao de Randy, cujo instinto de auto-preservação fica poeticamente de lado quando sua verdadeira paixão pede passagem. O filme deixa uma sensação parecida, de paixão sobre um personagem e por uma coisa (apesar de não somente) – embora em tom e com “motivos” completamente diferentes –, à que tive em momentos de Maradona por Kusturica (2008), de Emir Kusturica. Mas aí já é assunto pra outro texto.
Filmes da semana:
1. Vício Maldito (1962), de Blake Edwards
2. Noites com Sol (1990), de Paolo e Vittorio Taviani
3. Beijos Proibidos (1968), de François Truffaut
4. Guerra dos Mundos (2005), de Steven Spielberg
5. Maradona por Kusturica (2008), de Emir Kusturica
6. Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock
7. O Lutador (2008), de Darren Aronofsky
8. O Grande Sinal (1921), de Edward F. Cline e Buster Keaton (curta)
9. Guernica (1978), de Emir Kusturica (curta)
10. Dublê de Corpo (1984), de Brian de Palma
11. Cova Rasa (1994), de Danny Boyle
12. Amor à Queima-Roupa (1993), de Tony Scott
* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.