sábado, 26 de setembro de 2009

O Show Não Pode Parar (2)*



O discreto horror da(s) padaria(s)

O que se esperar de um documentário? Para ser mais específico, o que imaginar de um documentário cuja base não é o jornalismo, não é política, mas sim o próprio mundo do cinema – e tudo obviamente ligado a ele? Informação, ritmo e ponto de vista são bons para começar. E O Show Não Pode Parar (The Kid Stays in the Picture – EUA, 2002), de Nanette Burstein e Brett Morgen (baseado na auto-biografia de Robert Evans) é um dos exemplares que melhor arranja tudo isso – e muito mais.

Robert Evans, hoje com 79 anos, é uma das figuras mais emblemáticas de Hollywood. Ator aparentemente prodígio, descoberto por acaso (justamente por não ser ator, lembra ele), percebeu mais tarde que, na verdade, queria ser não o cara que atua, mas o que manda. E mandou durante muito tempo – especialmente do final dos anos 60 até meados dos anos 70.

O curioso é que O Show Não Pode Parar não se limita a repetir o clichê de uma Hollywood padaria, onde não existe sentimento nem escrúpulos, mas também mostra quem são os padeiros (e especialmente uma padaria específica – a Paramount) e os momentos nos quais as palavras consideração e respeito evaporam sem cerimônia alguma. Não menos fascinante é o quanto Evans se expõe – e expõe os outros – em um retrato que, desde o começo, deixa claro ser uma versão ultra pessoal dos fatos.

Ele narra, interpreta, vê suas imagens de arquivo, comenta-as... é um personagem cuja vivacidade é conduzida – por Nanette Burstein e Brett Morgen – com influência que mescla presença e discrição em doses ideais para fazer o filme andar num ritmo próprio. Não menos interessante é que o final, quando há um descarado flerte com uma óbvia pieguice, trata-se de uma coerência com o retrato apaixonado e – ali – otimista de Evans, que traz certa espontaneidade ao que tenderia ao artificialismo. Forte e honesto, inclusive ao admitir um possível desvio dessa honestidade. Difícil de encontrar parecido – como O Bebê de Rosemary, Chinatown, Love Story e Poderoso Chefão, todos chefiados por Evans.

Filme: O Show Não Pode Parar (The Kid Stays in the Picture – EUA, 2002)
Direção: Nanette Burstein e Brett Morgen
Elenco: Robert Evans, Roman Polanski, Jack Nicholson, Catherine Deneuve.
Duração: 93 minutos

8mm
Segunda-feira

É segunda-feira (28). No Centro de Cultura Adonias Filho, em Itabuna, às 19 horas: a primeira exibição pública da versão definitiva de Do Goleiro ao Ponta-esquerda, meu documentário sobre a seleção de futebol amador de Itabuna. A entrada é franca.

Filmes da semana:
1. O Show Não Pode Parar (2002), de Nannete Burstein (****)
2. Se Beber, Não Case (2009), de (cinema) (***)
3. A Última Sessão de Cinema (1971), de Peter Bogdanovich (***)
4. Antes do Amanhecer (1995), de Richard Linklater (****)

(2) Segundo texto publicado sobre o filme – o primeiro em 29 de novembro de 2008.

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O quarto de Rainer*

Uma suíte.
- Mari... tá me ouvindo?
- Oi... tô.
- Na coluna desse mês, quero falar de Bukowski e Nabokov.
Ela volta para o quarto, onde tenta andar sem as lentes.
- Na Cinebar?
- Isso.
- Ela é de cinema, Theo.
- É porque gostaria mesmo de falar de nós dois, mas preciso de uma desculpa pra isso.
- Através de Bukowski e Nabokov?
- Isso. A gente tem citado muito os dois justamente nesses dias. E acho que eles falam muito não só de gente, como até da gente.
Mari encontra as lentes – ainda incapazes de fazerem o mesmo com a camisa, a calça e os outros membros da família.
- Você bem sabe, adoro Nabokov, e até gosto de alguma coisa de Bukowski, mas espero que ele não fale muito da gente. Nem você como ele. Naquele documentário, o Born Into This, ele dá uma sequência de pontapés na mulher, a abestalhada com quem depois ele até casou. Lembra?
- Aham. Só não tenho certeza se foram vários pontapés, tapas, ou até, é possível, afagos bukowskianos. No fundo, e de um jeito bem próprio, ele amava as mulheres.
- Bukowski nunca amou as mulheres. Ele amava fêmeas. Ou melhor, trepava com elas – pra usar uma linguagem mais próxima da dele.
- Com mais ou menos freqüência, é normal pensar assim às vezes.
- E doente é transformar o às vezes em uma vez sem fim.
- Ah, Mari, os dois tinham escritas diferentes, vidas diferentes, e amavam de um jeito diferente. Pra resumir, Bukowski gostava de cerveja, Nabokov gostava de borboletas. Era o jeito de cada um encarar a solidão pra escrever.
- Ah... se for para falar em solidão, melhor a gente convocar Rilke.
- Dele eu só li Cartas a um jovem poeta.
- Que você adorou, e que, apesar de muito bom, eu acho uma das coisas mais fracas que ele já fez. Ele foi, inclusive, o primeiro grande culpado por minha obsessão por Alemanha e Tchecoslováquia. Você sabe, não é?!
- Sei, sim. E, conhecendo como te conheço hoje, nunca te visualizaria com um moreno e sul-americano como eu.
- Quando a gente se conheceu, saquei logo que você era a dose certa da mestiçagem brasileira, com algo de tcheco adquirido pela vida e pelos livros. Mas, tenha certeza, eu não abriria a boca, e muito menos o ouvido, se soubesse que você pensava que Rilke era uma mulher. Quer dizer, hoje tenho intimidade suficiente para me referir a ele como Rainer, não acha?!
- Hum... você lembra do primeiro nome de Fassbinder?
- Rainer também.
- Sabe o que isso significa?
- Hum..., murmura Mari, em estágio avançado, de encontro à camisa. Que...
- Você vai deixar sua blusa aí, voltar pra cá e fazer um Rainer comigo.
- Ahn?!
- A gente vai fazer um filho que vai se chamar Rainer. Agora. Que acha?
- A tá. Adorei a ideia. Principalmente por Rainer, lógico.
- Essa é a Mari sutil e cruel que eu conheço.
- Ô, Theo... é porque tenho que trabalhar. Você tá de férias.
- Eu escrevo, não tenho férias. Tenho é mais tempo livre pra ocupar com o teclado. E o mesmo vale pra você.
- O que vale pra mim é o seguinte, Theo: se não for trabalhar, fico sem emprego; se ficar sem emprego, a renda diminui; se a renda diminuir, passo a me preocupar em fazer dinheiro e, consequentemente, fico sem tempo pra ler e escrever.
Mari está pronta – mentira, ainda falta a jaqueta.
- Isso quer dizer..., sugere Theo.
- Que tenho que ir...
- E que quem escreve, na verdade, trabalha para não ter férias.
- É triste. E bonito. Mas tenho que ir... E a Cinebar, já tem um norte pra ela?
- Cinema, ora.
- Nabokov, Bukowski, Rilke...
- Estarão no meio.
- Não culpe o editor se ele perguntar para onde foi o cinema. Ou o bar. Sem trocadilho.
- Ele quer algo mais alcoólico que Bukowski? E mais cinematográfico que Rilke e Nabokov? Se sim, tenho do meu lado Fassbinder, que vale pela soma da maioria dos cineastas vivos.
- Verdade. E agora eu vou de verdade. Só pegar minha bolsa, já tô atrasada.
- Tá bom. Volta logo.
- Volto, sim.
- Bom trabalho...
- Obrigada, Theo... Beijo. E até mais...
- Té...
Mari abre a porta e sai, mas não antes de dizer.
- Ah, e coloque mais alguém de cinema no texto, viu?!
- Pode deixar...

A beleza do caos...
Dessa vez peguei emprestado Mari e Theo de O Pequeno Caos (1966), de Rainer Werner Fassbinder. O curta, que tem ainda o próprio Fassbinder com apenas 21 anos no papel de Franz, é uma coisa que transborda um inconsequente e contagiante afeto pelo ato de ir ao cinema. E de um jeito bem alemão – o que, embora eu sinta, não faço ideia do que significa.

... e d’água em pedra
Outra maneira – mais fácil (e nem por isso desinteressante) – de ter um contato indireto com a mente juvenil de Fassbinder é assistir ao Gotas d’Água sobre Pedras Escaldantes (2000), de François Ozon, baseado em peça que o gênio-prodígio bávaro escreveu com – não duvidem – 19 anos. Muito bom.

Maria Nabokowski
Born Into This (2003), de John Dullaghan, é o ótimo documentário sobre vida e obra de Charles Bukowski, que tinha alguma ligação também com cinema, mas no que não posso me aprofundar pela falta de espaço. Vejam o filme.
Com relação a Vladimir Nabokov, entre outras coisas, ele escreveu Lolita, com adaptações de Stanley Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1997), e Desespero, no qual se baseou Desespero – Uma Viagem para a Luz (1978), de Fassbinder.
Já Rainer Maria Rilke, bem, parte dele está em Asas do Desejo (1987), de Win Wenders.
Ah, antes que me esqueça, o californiano Bukowski, na verdade, nasceu na Alemanha. Mari sabe do que fala.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (também impressa) de setembro do jornal Direitos http://www.jornaldireitos.com.br/.

sábado, 19 de setembro de 2009

Deixa Ela Entrar*



Sobrenatural lírico

De maneira não premeditada, em menos de uma semana assisti a quatro filmes do gênero – A Profecia (1976), O Príncipe das Sombras (1987), Deixa Ela Entrar (2008) e Arraste-me para o Inferno (2009) –, o que, se por um lado não passou de uma obra do acaso, por outro ajudou a potencializar o caráter específico (“estético” e “cultural”) do sueco Deixa Ela Entrar (Låt den rätte komma in – Suécia, 2008), de Tomas Alfredson.

Pouca coisa se tornou tão americana como os filmes de vampiros, e, para não ir tão longe, basta lembrarmos de Entrevista com o Vampiro (1994), Drácula de Bram Stoker (1992) e Martin (1977) – este de ninguém menos que George Romero. E isso para não falar nas séries Buffy – a Caça Vampiros (1997), True Blood (2008) e o recente fenômeno Crepúsculo (2008). Mas Deixa Ela Entrar, curiosa e felizmente (por conseguir uma voz própria em um meio já tão saturado), pouco dialoga com eles além do inevitável.

Como esperado, o clima aqui é frio e mórbido – como o da Pittsburgh tão estimada por Romero. A diferença é que, se a escolha do interior da Pensilvânia por si só representava uma locação propícia para a formação da atmosfera interiorana e relativamente longe de onde a maioria das coisas acontece (inclusive pedidos de socorro), aqui o pano de fundo é a própria metrópole: Estocolmo.

Nela, a distinção vem ainda maior graças a uma bem pessoal construção dos personagens e da maneira pouco usual (mas nem por isso narcisista) de filmar determinadas cenas. Cada morte, por exemplo, não só tem uma função narrativa (o que não acontece com outros filmes marcados pela gratuidade de homicídios) como traz um caráter emocional. Mesmo o mais frio dos assassinatos – o do começo do filme, talvez – é relativizado e visto com um olhar mais generoso com o passar do tempo.

Generoso, sim, porque Deixa Ela Entrar é quase um manifesto de um caráter humano dos vampiros. E talvez o melhor exemplo seja o momento em que Eli (Lina Leandersson), que tem “mais ou menos 12 anos há algum tempo”, diz a Oskar (Kåre Hedebrant) que “mata porque precisa”. Quando uma frase óbvia (dentro do mundo dos vampiros) como esta consegue ganhar uma conotação genuinamente emotiva, fica a certeza de que estamos diante de algo especial.

Como é, por exemplo, a cena da piscina. Alfredson mostra sangue e tensão de um jeito bem peculiar, sem que a inusitada escolha do enquadramento chame uma atenção maior do que o que ele mostra: mais até do que pela sobrevivência, a crueldade justificada pelo amor – com um lirismo que deve tornar a cena indelével para a maioria que assistir.

Embora, é verdade, a trilha sonora às vezes soe invasiva (sublinhando uma sensação já perceptível), ela pouco compromete e não deixa de estar em certa sintonia com o filme. Que consegue terminar de um jeito gratificante e otimista, de forma que o resultado se liga menos a uma concessão do que a uma coerente demonstração da força do relacionamento e do ideal defendido. Muito bom.

Filme: Deixa Ela Entrar (Låt den rätte komma in – Suécia, 2008)
Direção: Tomas Alfredson
Elenco: Kåre Hedebrant, Lina Leandersson.
Duração: 115 minutos

8mm
Suécia

Guardadas as devidas proporções (de talento e de quantidade de filmes – ambos ainda em aberto), Alfredson faz com o filme de vampiro o que alguns italianos, e especialmente Sergio Leone, fizeram com o western nos anos 60 – os western spaghetti. Independente de qual caminho o sueco tome (segundo o IMDB, vai pro quinto longa – nenhum em DVD oficial por aqui), que o talento esteja por aí.

Dia 28
Como a coluna fica no ar até o próximo sábado (antevéspera do dia), aproveito para divulgar a primeira exibição pública da versão definitiva de Do Goleiro ao Ponta-esquerda, documentário que dirigi como projeto de conclusão do curso de Rádio e TV na Uesc. A sessão única, ou pelo menos a única com data confirmada até agora, acontece no próximo dia 28, no Centro de Cultura Adonias Filho. A entrada é franca.

Filmes da semana:
1. Deixa Ela Entrar (2008), de Tomas Alfredson (****)
2. O Príncipe das Sombras (1987), de John Carpenter (***1/2)
3. Arraste-me para o Inferno (2009), de Sam Raimi (***1/2)
4. Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci (***)
5. Tudo Sobre Minha Mãe (1999), de Pedro Almodóvar (***1/2)

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

sábado, 12 de setembro de 2009

Up - Altas Aventuras*



Manual que funciona – em animação

Tentar descrever o que fica de Up – Altas Aventuras (Up – EUA, 2009), de Pete Docter (co-direção de Bob Peterson) é cair em potencialmente irritantes frases de auto-ajuda. O que, se por um lado é sintomático ao explicitar a (suposta) superficialidade do filme, também é injusto, pois ele é muito mais que um resumo de preguiçosos e otimistas lugares-comuns.

Up é, e parece feliz com isto, um filme com perguntas e respostas prontas – certas ou não, independente de sua complexidade –, mas seu grande mérito está no desenvolvimento não só de sua potencialidade como de uma certa exclusividade audiovisual. Aqui, o mundo e as coisas são possíveis e palpáveis não (apenas) no cinema, e sim, mais especificamente, na animação.

Terminada a sessão, o sentimento agridoce do viver a vida e passar o tempo é enxugado em uma esperada alegria final recomendada a produtos com público alvo tão grande. O que deixa claro que ele segue medidas seguras, mas de uma empresa autora – Wall-E, Procurando Nemo, Ratatouille, Toy Story são também filhos da Pixar. Que, infelizmente, não faz parte da regra importada, de um nível um bem mais baixo – mas, felizmente, fala por bem por ela, como exceção.

Filme: Up – Altas Aventuras (Up – EUA, 2009)
Direção: Pete Docter (co-direção de Bob Peterson)
Elenco (vozes de): Edward Asner, Christopher Plummer, Jordan Nagai.
Duração: 96 minutos

8mm
Gran Torino

Não deixa de ser curioso um filme, à priori, para crianças, falar de velhice. Que, em boa parte do tempo, me lembrou o muito-muito bom Gran Torino (2008), de Clint Eastwood. Mas isto talvez não tenha nada além do óbvio superficial e seja apenas viagem de quem está de mudança e não pensou em nada de muito diferente para colocar aqui...

Filmes da semana:
1. Barfly (1987), de Barbet Schroeder (***1/2)
2. Via Crucis (2008), de Monique Alves (curta) (**1/2)
3. A Ilha dos Prazeres Proibidos (1979), de Carlos Reichenbach (***)
4. Whity (1971), de Rainer Werner Fassbinder (***)
5. A Profecia (1976), de Richard Donner (***)
6. Up – Altas Aventuras (2009), de Pete Docter (co-direção de Bob Peterson) (cinema) (***1/2)
7. Os Amores de uma Loira (1965), de Milos Forman (***)
8. Sobre Meninos e Lobos (2003), de Clint Eastwood (****1/2)

* Coluna também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Do Goleiro ao Ponta-esquerda

Antes até de confirmar a impressão definitiva, disponibilizo aqui o pôster da primeira exibição pública da versão final de Do Goleiro ao Ponta-esquerda – que dirigi como projeto de meu TCC.

28 de setembro, segunda-feira, Itabuna-BA, Centro de Cultura Adonias Filho.


















Atualização às 18h10min (depois de visualizar as opções impressas): versão será discretamente modificada. Depois posto a definitiva aqui.

sábado, 5 de setembro de 2009

As Cinco Obstruções*



Teste de admiração

Um cineasta chama outro para este segundo refazer o próprio filme – de quase 40 anos – cinco vezes, com restrições escolhidas pelo primeiro. Essa é a premissa de As Cinco Obstruções (De fem benspænd – Dinamarca/Suíça/Bélgica/França, 2003), de Lars Von Trier (Dançando no Escuro, Dogville) e Jørgen Leth – o desafiado que aceita refilmar seu The Perfect Human (1967) com as limitações impostas pelo colega. O resultado é especial e simbólico, com o que de melhor e pior Von Trier (não limitado ao “apenas” realizador) pode nos brindar.

Como poucas vezes acontece, o grande mérito de As Cinco Obstruções está na força de se alcançar o potencial demonstrado já pela superfície do tema – aqui beneficiado por tudo a que, direta ou indiretamente, ele pode se ligar. Você percebe, de um lado ou de outro do debate (às vezes um mero bate-papo), em maior ou menor escala, não só o tesão pelo desafio, como também uma eterna disputa – em que ambos ganham – entre a paixão pelo cinema e pelo fazer filmes.

O mérito em se explorar bem a ideia inicial, contudo, me parece muito menos devido às conversas entre Von Trier e Leth do que graças ao cruzamento entre as sugestões do primeiro e os resultados obtidos pelo segundo em cada curta. Em alguns momentos, o gigantesco ego de Von Trier parece realmente atrapalhar, e os comentários sobre o caviar e o seu gosto por álcool/vodca carregam um óbvio “e daí” que ganha coro quando pensamos que até o ritmo e o dizer algo do filme parecem prejudicados.

Ainda assim, As Cinco Obstruções, que pode servir como outra referência para novos debates referentes à metalinguagem dentro da metalinguagem, acerta em cheio quando funciona como tentativa de descobrir até que ponto podem ir as potencialidades do cinema feito (e limitado) por quem tem talento. Primeiro Leth, vez a vez testado, depois Von Trier, que nos leva por uma estrada conflituosa para simplesmente reiterar – aqui de forma contida e um tanto inesperada pelo caminho tomado – seu tom passional não só pelo que faz como por quem admira.

O curioso é que essa explicitação do amor de Von Trier não vem como uma espécie de catarse, como acontece, por exemplo, em Dogville e Dançando no Escuro. Aqui, o diretor parece muito mais contido (pode agradar a uns justamente por isto) e seu prazer parece menos espontâneo do que pré-programado; ele parece se cobrar o dizer que ama mesmo que, naquele momento, necessariamente não ame daquele jeito.

Mesmo assim, essa certa (impressão de) mecanicidade não nos impede de mergulhar profundamente no mundo do discutir e fazer cinema – entre quem sabe. E isto é sempre bom, independente do quanto transborde, na tela, um sentimento que ajude ou não a cativar.

Filme: As Cinco Obstruções (De fem benspænd – Dinamarca/Suíça/Bélgica/França, 2003)
Direção: Lars Von Trier e Jørgen Leth
Elenco: Lars Von Trier, Jørgen Leth, Claus Nissen.
Duração: 90 minutos

8mm
Anticristo

Falei sobre este As Cinco Obstruções, entre outros motivos, porque o novo Von Trier não vai chegar por aqui. Nunca. A menos que alguém acredite na coragem (sempre bem vinda e nunca presente) de o nosso Starplex exibir um filme chamado Anticristo, cujas mutilações de órgãos genitais estão entre as cenas mais leves.

Top-10 de agosto
A menção honrosa vai para curta O Pequeno Caos (1966), de Rainer Werner Fassbinder. Abaixo a lista, que pretendo deixar sempre só com longas mesmo.

10. O Grande Lebowski (1998), de Joel e Ethan Coen (***1/2)
9. Milk (2008), de Gus Van Sant (****)
8. Apocalipse Now Redux (1979), de Francis Ford Coppola (****)
7. O Desprezo (1963), de Jean-Luc Godard (****)
6. O Pagamento Final (1993), de Brian de Palma (****)
5. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), de Michel Gondry (****)
4. Hair (1979), de Milos Forman (****)
3. Kill Bill Vol. 1 (2003), de Quentin Tarantino (****1/2)
2. Underground (1995), de Emir Kusturica (****1/2)
1. A Noite Americana (1973), de François Truffaut (*****)

Obs: Apesar de alguns vistos ainda em agosto, os filmes da semana (abaixo) só entram na “disputa” pela lista do próximo mês.

Filmes da semana:
1. A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir
2. Cidade dos Sonhos (2001), de David Lynch
3. As Cinco Obstruções (2003), de Lars Von Trier e Jørgen Leth
4. A Última Noite de Boris Grushenko (1975), de Woody Allen
5. Pocilga (1969), de Pier Paolo Pasolini
6. Por uma Vida Menos Ordinária (1997), de Danny Boyle

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.