sábado, 28 de março de 2009

Gran Torino*



Sobre vitalidade e vida

Nacionalista e com postura política conhecidamente conservadora – embora não tão simplesmente resumível. Veterano do exército, escalado para a guerra da Coréia. Identificado com e ligado ao (meio) oeste norte-americano. As duas definições servem tanto para Clint Eastwood (que não foi à guerra devido a um acidente de avião) como Walt Kowalski, inicialmente um dos velhos mais ranzinzas do cinema. Com aparências indiferenciáveis em alguns momentos, ambos estão em Gran Torino (EUA/ Austrália, 2008), o novo filme do outrora Homem Sem Nome de Sergio Leone.

O diretor italiano, inclusive, vem muito à mente no começo da do filme, o que, curiosamente, não é bom. Apesar de no funeral de sua mulher, Sr. Kowalski deixa claro que maior que sua tristeza é a indignação com aqueles que não respeitam o momento do jeito que ele considera ideal. O polonês de coração americano-xenófobo resmunga o tempo todo como um velho mal-humorado caricato, e diz tudo o que pensa, mesmo quando a fala parece obviamente apenas um pensamento dele para ele mesmo. Até o cuspe de Kowalski, que nos remete, entre outros, a Henry Fonda e ao próprio Eastwood nos filmes de Leone, está menos para um clichê estilizado do velho chato do que para um excessivo didatismo na construção do personagem. Até aí, talvez numa busca por uma coerência dentro dessa incoerência (caricatura x gente), os grupos presentes e mostrados no filme funcionam como estereótipos – antes de muitos (mas não todos), enfim, terem a oportunidade de se apresentarem como além do que foi ali “criado”.

Num encontro assaz importante para o resto do filme, Kowalski ‘encontra’ uma vizinha que não o agrada por ser asiática (hmong, povo que veio para os EUA após a Guerra do Vietnã). “Por que vocês vieram de tão longe para o ‘meu’ bairro?”, e “pensei que o frio do meio-oeste americano espantasse todos os idiotas daqui” são algumas das frases de Kowalski nos primeiros momentos de relativo carinho demonstrado por ele – até então resumido a um misantropo que demonstra mais afeto a um carro que não usa (seu Gran Torino, que pouco aparece e muito complementa a idéia do filme) do que a qualquer ser humano.

Principalmente a partir daí, felizmente, torna-se mais clara a leveza com que Eastwood consegue levar Gran Torino, num contraste com a dureza de Kowalski, que em meio a tanta aspereza do início, mostra pouco a pouco empatia até para com quem ele inicialmente odeia. Sua solidão começa a ser compreendida e palpável, além de parte do que fez ele ser o que é. Com muito já realizado e impossível de ser refeito, além de pouco ainda por fazer, Kowalski tem consciência de que ele mesmo deve escolher o rumo de sua historia, e (indiretamente) dos outros. Essas decisões tomadas (e em parte a falta delas) resultam em imagens e momentos que devem martelar na cabeça de quem assiste por muito tempo.

Para melhor ilustrar a experiência, fui assistir a Gran Torino com o final na minha cabeça, graças a uma infelicidade infantil do bom Luis Carlos Merten, que sugeriu com todas as letras – no seu blog – o que acontece no fim do filme. Ainda assim, e com mosquitos que vêm por tabela no cinema do shopping Barra, me pareceu inevitável sentir o nó na garganta e encher o olho de água no final da projeção.

Em outros trabalhos memoráveis de Clint na frente e atrás das câmeras (para não falar em Dirty Harry), muito se fala da ligação de Gran Torino com Os Imperdoáveis, mas que para mim dialoga menos com esse aqui do que Menina de Ouro. A diferença é que Gran Torino, diferente do filme estrelado por Hilary Swank, parece um melodrama ainda mais enxuto, tanto pelo roteiro (de Nick Shenk, responsável por boas sacadas de humor e menos apocalíptico com seu personagem principal), como pela direção de um mestre, que sabe ser contido sem ser frio, e emocionante sem ser piegas.

Aos 78 anos, Clint Eastwood faz o tipo de cinema que talvez só ele seja capaz de fazer com tanta autoralidade e (principalmente) autoridade hoje em dia. Como se não fosse suficiente, ele também funciona praticamente como um messias da narrativa clássica bem feita, sem parecer, em nenhum momento, ter essa idéia como uma prioridade. A impressão que fica é que sua prioridade mesmo parece simplesmente fazer filmes. Com a experiência de alguém que, como Kowalski, entende de vida e de morte. E com o talento de quem sabe tratar de ambos, e como poucos, no cinema.

Fime: Gran Torino (idem, EUA/ Austrália, 2008)
Direção: Clint Eastwood
Elenco: Clint Eastwood, Bee Vang, Ahney Hor.
Duração: 116 min

8mm
Kowalski

Ver um personagem e uma persona tão marcantes como Eastwood e Walt Kowalski fizeram me lembrar de uma atuação mais potente até que o Gran Torino de Clint: Marlon Branco em Uma Rua Chamada Pecado (1951), onde ele interpreta Stanley Kowalski. Não me lembro de um sobrenome não-inglês no cinema em dois ícones-personagens tão poderosos e sem ligação entre si (mesma família não vale, como no caso dos Corleone). Alguém aí lembra de outro?

Edgar Navarro de novo
Falei do Eu Me Lembro na semana passada, quando, por coincidência, Edgar Navarro começou a filmar seu segundo longa – só vi essa semana a entrevista dele a João Carlos Sampaio, do A Tarde.
O Homem que não Dormia tem em Igatu (município de Andaraí), na Chapada Diamantina, a locação para a maioria das cenas. Mas, sem ver nada até agora, o melhor para mim já são os personagens. Nas palavras de Navarro: “são tipos bem diferentes: um padre, a mulher de um coronel, um pobre com retardo mental, uma mulher simples e de vida sexual liberta e um louco. Todos eles sonham com uma espécie de alma penada, um rico barão que morreu protegendo a sua botija de ouro”. Para completar, ele próprio (quem já viu sabe que figura é) vai interpretar o rico barão. Coisa válida vem por aí.

Qualquer resumo é pouco
Ainda não vi muitos dos filmes que concorreram à Palma de Ouro em Cannes ano passado, mas Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet, definitivamente, é digno dela.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Louca Paixão (1973), de Paul Verhoeven
* Dias de Loucura (1990), de Wong Kar-Wai
* Escola de Rock (2003), de Richard Linklater
* A Fonte da Donzela (1960), de Ingmar Bergman
* Aniversário Macabro (1972), de Wes Craven
* A Conversação (1974), de Francis Ford Coppola
* Entre os Muros da Escola (2008), de Laurent Cantet (cinema)
* Gran Torino (2008), de Clint Eastwood (cinema)


Imagens em: http://www.thegrantorino.com/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

2 comentários:

heron disse...

bom texto, liio

acho que eastwood está fazendo seus melhores filmes nessa fase hyper-ativa...

ah, e nunca mais quero ver trailers na vida, pq o trailer de gran torino entrega muitas surpresas boas, saco!

e viva eastwood, meu anti-lars-von-trier favorito!

.'.Gore Bahia.'. disse...

De fuder. Walt Kowalski é o cara. Incrível como o filme cria estereótipos pela própria função de um início esquematizado de roteiro, e brinca com isso durante um desenvolvimento que vai desconstruindo os estereótipos criados inicialmente. Isso além do discurso cultural que o filme gera sem descambar pro chato. Bom texto pra um bom filme!