sábado, 7 de março de 2009

Leonera*



Da delicadeza à natural falta de

Leonera (idem, Argentina/Coréia do Sul/Brasil, 2008), de Pablo Trapero, é um dos exemplos mais claros de como empatia ou antipatia (ou a falta delas), apesar de presentes, podem se tornar secundárias se comparados ao êxito de se gerar aproximação estritamente humana do mundo que cerca um personagem. Mesmo quando o investimento inicial na construção dessa atmosfera própria toma um rumo diferente, através do qual o personagem assume o filme para si e o leva para um final talvez simplório.

Antes, contudo, Leonera começa com imagens que demoram a dizer o que significam, até um assassinato que não percebemos exatamente como aconteceu. Esse crime, que envolve versões distorcidas pelos suspeitos, termina colocando na cadeia Ramiro (Rodrigo Santoro, que não compromete) e Julia (interpretada por Martina Gusman).

Desde então já sentimos uma quantidade absurda de organicidade presente, não só em Julia, sobre quem é o filme, como no ambiente. O presídio transpira enquanto ela inspira, tudo é humano, tem vida. A atuação de Gusman, aliás, é no mínimo do mínimo corajosa. Ela começa visualmente mais atrativa (apesar de abatida), passa para uma grávida sem travesseiro – com um barrigão de verdade –, e chega a momentos em que o ar da prisão parece oxidar toda sua fisionomia.

No período que passa na cadeia, Julia tem que lidar com uma guarda “do mal”, mas que parece até de verdade (existem pessoas de verdade que são caricatas de algum jeito, ora) quando nos defrontamos com uma colega de mesmo função mas que se mostra mais compreensiva. Esse caráter humano, pelo bem e pelo mal, sem soar pretensioso ao querer sintomatizar ou responder demais as coisas, carrega bem Leonera.

Esse poder que Trapero tem de fazer seus personagens se expressarem não é novo, e é muito bem notado no delicioso Família Rodante (2004), por exemplo. Assim como ali, apesar de em tons bem diferentes, aqui seus personagens não agem simplesmente, mas vivem de acordo com as circunstâncias, sem que essas soem colocadas para simplesmente provocar a reação obtida, e sem que as pessoas se mostrem passivas. Em Leonera, esse jeito Trapero de escrever/dirigir se mostra claro com Julia (e tudo o que a rodeia), que demonstra uma naturalidade bem vinda em todas as atitudes tomadas, mesmo com algumas potencialmente controversas, mescladas com outras imagináveis e compreensíveis para um mãe de um filho pequeno.

Em meio a esses acontecimentos que fluem com muita lubrificação, alguns anos se passam e chega o dia em que Julia sai da cadeia – não para sempre, fica claro. Acompanhamos então sem cortes o percurso que ela faz dentro da prisão, cujas marcas parecem pulsar junta e naturalmente com ela. O ponto é que, embora essa fluidez esteja presente outra vez aqui, talvez o pecado do filme seja esse caminho bem trilhado para um final que fecha bem o título e a idéia, mas que pelo menos pra mim soa decepcionante.

Isso porque Leonera pode ser traduzido como lugar onde ficam as leoas, ou mais especificamente aqui, como o local onde ficam as detentas com filhos. E para um filme que investia tanto na construção e reconstrução de um ambiente e de uma situação tão bem cuidadas, o fim remete a uma idéia melodramática que soa mecânica e não bem-vinda para tudo que vimos tão brilhantemente ilustrado até ali.

Relembrar Leonera depois de se ter chegado a esse término o torna quase previsível, embora esse “problema” – que a princípio não é necessariamente um problema – seja claramente minimizado pelos méritos do filme, que não são poucos. Força ele tem.

Ps: Escrevi o texto mais de duas semanas depois de ter visto o filme, o que não é o ideal, eu sei. Mas o problema é que recebi a visita do mosquito maldito e, bem, muito mais até do que sexo, dengue = cama. E como o cinema não vem até Maomé, Maomé vai até à memória.

Ps2: Muito do que havia anotado (no PC) sobre Leonera se perdeu quando decidi escrever sobre Sim, Senhor na semana passada – na retrasada não houve texto pela mudança do jornal. Nesse tempo, perdi muita coisa. No dia não gostei tanto do filme, como o texto pode sugerir. Mas hoje, em minha cabeça, ele é mais ou menos o que está aí.

Filme: Leonera (idem, Argentina/Coréia do Sul/Brasil, 2008)
Direção: Pablo Trapero
Elenco: Martina Gusman, Elli Medeiros, Laura García, Rodrigo Santoro.


8mm
Argentina

Acho uma bobagem torcer contra a Argentina no futebol, porque realmente gosto de futebol. E acho uma besteira maior ainda quando pessoa torce contra o cinema dos vizinhos ou se irrita porque a safra de cineastas de lá é melhor do que a daqui – há controvérsias, mas concordo. Enquanto bem feito e enquanto cinema, qual o problema de ser argentino, sueco, romeno ou extraterreno? E de se assumir isso?

Brasil
Sam Dunn é um músico e antropólogo que sabe o que faz e do que fala. Depois de dirigir Metal – Uma Jornada pelo Mundo do Heavy Metal (2005), a história audiovisual do gênero, e Global Metal (2008) – que não vi, ele dirige Iron Maiden: Flight 666, que acompanha a turnê do Iron em 2008. O documentário tem estréia mundial marcada para 21 de abril.
Produção americana, dirigida por um canadense (co-dirigido por Scot McFadyen), sobre uma banda inglesa, o filme tem pré-estréia mundial marcada para o próximo sábado (14), veja só, no Rio de Janeiro. A sessão – que acontece antes do show da banda (na praça da Apoteose) – está marcada para às 14 horas no Cine Odeon, que torço para estar com todos os canais de áudio impecáveis. O ingresso, compreensivelmente salgado, custa R$ 80 – R$ 40 a meia.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* As Idades de Lulu (1990), de Bigas Luna
* Família Rodante (2004), de Pablo Trapero
* O Homem que Amava as Mulheres (1977), de François Truffaut
* Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos
* Scoop – O Grande Furo (2006), de Woody Allen
* O Selvagem (1953), Laslo Benedek
* Bonequinha de Luxo (1961), de Blake Edwards
* Gotas d’Água Sobre Pedras Escaldantes (2000), de François Ozon
* Jamón, Jamón (1992), de Bigas Luna
* Amantes do Círculo Polar (1998), de Julio Medem

Imagens em: http://www.adorocinema.com.br/ e http://www.cinemaemcena.com.br/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

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