sábado, 21 de março de 2009

Eu Me Lembro*



(Na segunda metade do ano passado, acho que ainda antes de publicar o primeiro texto da 70mm, o diretor baiano Edgard Navarro veio lançar no Centro de Cultura daqui o seu primeiro longa-metragem, Eu Me Lembro. Filme e realizador simpáticos, além de genuinamente baianos, aumentaram minha vontade de rabiscar sobre ambos, pelo simples exercício de escrever mesmo. Ainda sem poder ir ao cinema, e sem publicar o texto na época, aí vai ele).

Eu Me Lembro (idem, Brasil, 2006), de Edgard Navarro, é uma coisa pra ser vista, revista e sempre citada, até pela pouquíssima circulação que teve. Obra semi (ou quase totalmente) auto-biográfica, carrega uma honestidade que, mesmo com algum excesso e perda de rumo, funciona como uma bela divagação poética sobre o próprio passado.

Pra ficar claro a quem se impressionar com o debutar de Navarro, é bom lembrar que ele chega ao seu primeiro longa já com 56 anos, mas um currículo respeitável de curtas-metragens nas décadas de 70 e 80. Brecou sua produção em 1989, quando dirigiu aquele tido como seu melhor resultado até então: o média-metragem Superoutro. Depois dali Navarro demorou quase 20 anos para voltar à ativa de fato, em 2006. Embora todo esse período possa fazer qualquer um perder o tato com a câmera, Eu Me Lembro não demonstra nenhum sinal alarmante de falta de familiaridade entre diretor, seu instrumento, tema e atores.

Dividido em duas partes, Navarro “se narra” através de Guiga (inspirado no próprio diretor, mas, de acordo com ele próprio, com toques criados e de conhecidos de sua infância), primeiro como menino, depois como adulto. As cenas de Guiga criança mostram parte do instinto iconoclasta do diretor, que filma fantasias de um menino que, entre outras coisas naturais, começa a descobrir que o pinto e a mão podem ter mais funções do que papai e mamãe disseram. Navarro explora também a normalidade de, como criança, querer saber sobre muita coisa que nem alguns adultos têm opinião própria e/ou relevante, como religião e política. Toda essa parte fascina não só pelo tom pessoal, como também pela universalidade de questões apresentadas. Com ironia, humor ou simples curiosidade, coisas sempre válidas.

Já o Guiga adulto entra em contato com indagações diferentes. Ele já descobriu novas funções para o pinto e as mãos, mas também para a cabeça e a boca. Entra em contato com gente ligada a toda atmosfera nostálgica da época retratada, em cenas interessantes, embora muita gente pareça uma (quase sempre irritante) caricatura (com boa vontade, aqui vista como um arquétipo aceitável): “o intelectual”, “o revolucionário”, “os hippies drogados”, e por aí vai.

É a partir daí que o filme começa a se perder numa divagação talvez supérflua que, paradoxalmente, é também fascinante. A questão psicodélica-surreal passa como um longo momento de coisas já filmadas e vistas em outros tantos (bons) filmes sobre a época, e acabam funcionando como um genérico (para não usar termo pior) numa obra que transborda autoralidade. Nesse momento, tem-se a impressão de que Navarro ficou tão apaixonado pela própria história que se perdeu em meio à idéia de filmar a psicodelia e o seu passado, que conflitaram com o finalizar do filme, até ali muito mais único.

A narração que aparece em algumas partes do filme também é curiosa. Às vezes brilhante e intimista (complementando a imagem sem ser descartável), em outros momentos ela foge do clima ao assumir um tom excessivamente literário, dissonante de uma obra que transborda uma espécie de poesia naturalista.

Por outro lado, essa poesia exala uma paixão que é absolutamente maravilhosa. São belas as referências às coisas da época, da Bahia a Pink Floyd, passando por 2001 – Uma odisséia no Espaço (1968), Hair (1979) e Frederico Fellini como um todo – Amacord (1973), aliás, é provavelmente a maior influência para o filme de Navarro.

Mesmo que com um possível deslize provocado talvez por uma paixão quase cega à época revisitada, pode-se dizer que Eu Me Lembro funciona como uma honesta declaração de amor ao passado. Como muitas outras (até melhores), mas talvez como a mais expressiva da e para a Bahia nesse tempo recente. Da curiosidade pura e infantil até o contato com a vida como ela foi e é, passando pelo inegável amor ao cinema.

Filme: Eu Me Lembro (idem, Brasil, 2006)
Direção: Edgard Navarro
Elenco: Lucas Valadares, Fernando Neves, Arly Arnaud, Valderez Freitas Teixeira.


8mm
Salvador
Continuando em Salvador, nossa capital recebe desde anteontem (19) o V Panorama Internacional Coisa de Cinema, que vai até o dia 26, quinta-feira. A melhor notícia (aparentemente e em teoria) é o que diz o site do evento: http://www.coisadecinema.com.br/Hotsite/. “Se, em um primeiro momento, o Panorama colocará o cinema no centro das atenções e da cidade, no final o festival irá circular em cidades do interior da Bahia, levando o melhor do cinema brasileiro e mundial”. Que assim seja.

49
Seguindo na onda patriótica (mas nunca bairrista, por favor), que começou semana passada com Glauber e passou por Navarro e Salvador, nesse sábado (21) Ayrton Senna completaria 49 anos. Muita gente que ama cinema considera esporte somente as atividades físicas pelos atores, os únicos atletas do mundo, que não precisa de outros. Mas, indo nessa contramão, e reiterando um óbvio ululante, Senna é desses ídolos irretocáveis que, como exceção que foi, tem perdoadas todas as possíveis besteiras que tenha feito na vida. Gênio brasileiro – como poucos. Sempre bom lembrar.

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Do Outro Lado da Lei (2002), de Pablo Trapero
* Amor Só de Mãe (2003), de Dennison Ramalho (curta)
* Vidas Sem Rumo (1983), de Francis Ford Coppola
* O Selvagem da Motocicleta (1983), de Francis Ford Coppola
* As Canções de Amor (2007), de Christophe Honoré
* Boogie Nights (1997), de Paul Thomas Anderson
* À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), de José Mojica Marins
* Beleza Roubada (1996), de Bernardo Bertolucci
* Menina Santa (2004), de Lucrecia Martel
* Edifício Máster (2002), de Eduardo Coutinho

Imagens em: http://www.adorocinema.com.br/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

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