sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Romance*



Rabiscos sobre arte e “arte”

Romance (idem, Brasil, 2008), de Guel Arraes (Lisbela e o Prisioneiro, O Auto da Compadecida), é o tipo de filme que pisa, do início ao fim, em terrenos já explorados, esgotados, assassinados, ressuscitados e re-explorados. De Tristão e Isolda a Titanic e E O Vento Levou, passando obviamente por Romeu e Julieta – só que tudo isso adocicado.

Escrito pelo pernambucano Guel Arraes e pelo gaúcho Jorge Furtado, o início do filme lembra o pior deste segundo, desde a (aqui discreta) falta de tino para dirigir atores até uma insistência na escrita literária e literal dentro do cinema. Menos mal que a (falsa?) voz off – geralmente invasiva no ainda assim interessante O Homem que Copiava, de Furtado – pouco incomoda com o passar do filme, já que ela, antes de felizmente desaperecer, se mescla a poesias e recitações entre Pedro (Wagner Moura) e Ana (Letícia Sabatella).

Os dois, aliás, são o filme – ou deveriam ser. Romance praticamente não usa enquadramentos abertos, e quando eles aparecem são pelo filme dentro do filme. São Paulo e Rio (apesar de vermos o Pão de Açúcar, ele é irrelevante) são apenas lugares genéricos e irrelevantes onde o que importa é arte que acontece neles (ou é afetada por eles) e os atores que vivem neles. Nesse sentido, a Paraíba é mais importante para a trama.

Ainda na atuação, aqui ela é relevante não só obviamente para a tela e o resultado final, mas também no diálogo com teatro, cinema e TV, além do que se pode tirar do trabalho com ela para se atuar na vida – e vice-versa – como deixa claro Orlando (Vladimir Brichta). Em outras e poucas palavras, Romance é muita atuação e expressão, é metalinguagem e hibridismo.

Em meio a essas duas últimas, onde o filme acerta mais, Wagner Moura e principalmente Letícia Sabatella mostram parte de seus potenciais em momentos interessantes, principalmente dentro de seus personagens, tanto na TV como no teatro. Por outro lado, falta coerência para se criar uma personalidade própria de fora (nos palcos, TV e cinema) para dentro do filme que vemos (Romance), de quem eles interpretam nos seus papéis dentro do filme para os que eles interpretam no filme.

Aí vale a discussão até que ponto essa metalinguagem pode confundir a questão personagem-dentro-do-personagem-do-ator. Fica mais fácil se enganar o espectador e justificar um "erro" de performance, uma vez que ele pode simplesmente ser defendido como parte do personagem que não se desvencilhou do ator. Isso pode soar picaretagem, mas não deixa de ser interessante para um filme que parece o sonho de todo ator, com uma atuação dentro da atuação, com toques de humor e extremos de drama.

Ainda assim, a linha narrativa, além de obviamente referenciada, é cuidadosamente bem tratada. As relações (às vezes conflituosas) entre produtor-diretor, teatro-cinema, “arte-indústria”, “atuação-realidade” (enfoque nas aspas), amor-paixão, entre outras, conseguem funcionar como abordagens únicas dentro de um tipo de história repetida em filmes melhores e piores.

No entanto, Romance é o tipo de filme cuja fala de Pedro, no início, é reveladora. Ele justifica a tragédia em sua peça ao citar Titanic, E O Vento Levou e (após segundos de respiração profunda)... a “novela das oito” (er... Globo Filmes). Mas esquece, por exemplo, de Werther de Goethe. Em um filme que se alimenta de tanta coisa e de tanta gente já visitada e revisitada, isso parece resumir parte das influências e dos problemas de um filme que trabalha tanto com amor, metalinguagem, metáforas e arte, assim como os seus limites e sua ligação com a vida real – ou com o que pensamos ser real.

Do início ao fim, entre outras coisas, lembramos de Godard (O Desprezo), Almodóvar (Fale com Ela) e Woody Allen (Annie Hall), pra mim a citação mais explícita delas. Nada de novo, nem de melhor. Por outro lado, em meio a tantas referências (que poderiam ser homenagens gratuitas), é bom perceber uma voz própria – mesmo que pouco audível.
Ps: A sacada do continuísmo é muito boa.

Filme: Romance (idem, Brasil, 2008)
Direção: Guel Arraes
Elenco: Wagner Moura, Letícia Sabatella, Andréia Beltrão, Vladimir Brichta, José Wilker.


8mm
Festas e desejos...
Essa é a última edição de 2008 da coluna 70mm, que só volta 10 de janeiro. Uma pausa razoável para o réveillon e a ressaca do meu punhado de leitores (momento possessivo), de quem espero sempre o melhor.
Que o próximo ano seja marcado por filmes bons e ruins, já que o contraste ajuda a valorizar o(s) melhor(es). Que os bons venham em doses cavalares e os ruins em doses homeopáticas. Amém.

...para Itabuna e região
Pensei em fazer balanço em termos cinematográficos, mas desisti. Primeiro porque tem coisa que não abro mão de ver no cinema, o que significa que ainda não vi coisas que já estrearam e (ainda?) não passaram por aqui (caso do Queime depois de Ler, dos irmãos Coen), ou então que demoram uma eternidade pra chegar aos cinemas do Brasil – como o À Prova de Morte, de Tarantino.
De qualquer jeito, espero um 2009 melhor para a cidade e a região. Primeiro porque tento ser otimista nesse sentido, o que obviamente não quer dizer nada, já que isso não passa de uma torcida. E segundo porque já soube de um festival de cinema (não sei se de curtas ou do quê exatamente, só vi o final da entrevista da responsável pelo evento no programa Bem Viver, da TV Itabuna), marcado para julho – pelo que me lembro, o primeiro da cidade.
Vai que a gente consegue juntar uma meia dúzia de pessoas e, melhor, vai que a gente consegue levá-las a fazerem alguma coisa pelo cinema (ou pelos que gostam de cinema) daqui?! Bem, deve ser o espírito natalino, mas acho que ultrapassei todo e qualquer limite de otimismo agora...

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

Imagens em: http://www.romanceofilme.com.br/

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Zeitgeist (2007), de Peter Joseph
* Sexo, Mentiras e Videotape (1989), de Steven Soderbergh
* Rede de Mentiras (2008), de Ridley Scott (cinema)
* Ratatouille (2007), de Brad Bird
* Romance (2008), de Guel Arraes (cinema)
* Superbad (2007), de Greg Mottola
* Rocky Balboa (2006), de Sylvester Stallone
* Fog City Mavericks – Os cineastas de São Francisco (2007), de Gary Leva

3 comentários:

Anônimo disse...

Não é o mesmo filme que eu vi.Engraçado:o mesmo nome,o mesmo diretor,os mesmos roteiristas...Curioso e fácil desqualificar sem argumentação dois talentos como Jorge Furtado e Guel Arraes.
Emidio Cavalcanti
emidio@imip.org.br

Leandro Afonso Guimarães disse...

Olá, Emidio.

Acho interessante seu comentário, mas não disse que Jorge Furtado e Guel Arraes não têm talento.

Têm, cada um à sua maneira, um relativa (apesar de talvez excessivamente discreta) visão pessoal, e isso é sempre bom - no fim das contas, prefiro o gaúcho.

Agora uma crítica que parece ser de um filme ainda mais diferente do de nós é a do Eduardo Valente, na Cinética. Interessante.

um báu disse...

João veio me dizer: "Assisti Romance, adorei, mas vc vai ficar louca por esse filme. Escreva o que eu digo!" Ótimo ouvir isso pra quem está numa roça como Cabrália, sem nenhuma possibilidade de acesso a um cinema. rs... Depois de ler sua crítica fiquei ainda mais curiosa, e sobre o Jorge Furtado, eu gosto muito da linguagem dele, me apaixonei por Saneamento Básico e O Homem que Copiava. Nem mesmo a voz off, que normalmente costumo odiar, me fizeram desqualificá-lo, não consegui imaginar o filme melhor sem ela. Mas isso é extremamente pessoal, por isso entendi que vc não quis duvidar do talento do diretor ao dar sua opinião a respeito de aspectos como esse.
Beijo!!


ps (E nem venha, Cidadão Kane é espetacular!E isso não se deve só a revolução estética da obra...mas se o filme não te tocou, não vai ser minha defesa que irá mudar sua opinião, afinal não discutiremos a relatividade dos gostos, é seu direito tanto quanto o fato de eu não achar Laranja Mecânica lá essas coisas.)

=***