sábado, 20 de dezembro de 2008

Alice*



Não precisa ofender pra atingir

Não costumo assistir a séries de TV, nem a minis, pois exigem uma disciplina excessiva e porque, como o ministério da saúde não adverte, elas podem causar dependência. Ainda assim, acho obviamente interessante uma Capitu da vida, baseado num cara que fala de gente e da gente (brasileiros) – Machado Assis. Mas, quebrando o protocolo, vou aqui falar de outra mini-série nacional, que desde sua proposta inicial me agradou um bocado: Alice (Brasil, 2008), produção HBO com direção geral de Sérgio Machado (Cidade Baixa) e Karim Aïnouz (Madame Satã, O Céu de Suely), e que acabou no último dia 14.

Dividida em 13 episódios semanais, a série narra a história da personagem homônima (interpretada pela talentosa Andréia Horta), que parte de Palmas para São Paulo. Curiosamente, o fato de a premissa ser clichê, com zilhões de pessoas fazendo percurso semelhante há décadas, me parece menos óbvio do que pouco explorado.

São Paulo é das maiores cidades do mundo e a maior metrópole de todo o hemisfério sul. Mas, cinematograficamente falando, ela é bem menos visitada do que Rio de Janeiro e Buenos Aires, só pra ficarmos na nossa América. E um seriado como Alice, apesar da visibilidade restrita (somente na TV paga ou pelo site da HBO na internet), parece peça importante para uma indústria do gênero – sem me alongar tanto nesse ponto homérico.

Primeiro porque temos a maior cidade do país como personagem – o que não é inédito nem em séries nem em filmes, mas explorar a questão com qualidade é sempre interessante. E segundo (mas não por último) porque temos outras metrópoles (além do Rio) com tamanho, gente e luzes suficientes para se comportarem como tal e abrirem uma espécie de ‘franquia’ – Salvador, BH, Porto Alegre, Brasília, Recife, Curitiba, Fortaleza, Manaus e Belém, todas com no mínimo dois milhões de habitantes em suas regiões metropolitanas. Isso pra se limitar às capitais mais populosas e esquecer de meio mundo nos cinco cantos do país. Ver pessoas dessas cidades falando dessas cidades significa (teoricamente) honestidade, diversidade e miscigenação cinematográfica, num potencial que talvez nenhum outro país (EUA?) tenha.

No que diz respeito à trama da série, em linhas gerais, ela é compreensivelmente previsível e esquemática para jovens em SP. Temos em Alice uma menina-mulher de interior (uma capital com 200 mil habitantes é interior quando comparada a São Paulo) recém-chegada numa metrópole, com o pacote completo do arquétipo, dos sonhos às bobagens.

Ela está no meio de quem bebe, fuma, transa, cheira e trai, não necessariamente nessa ordem, nem necessariamente com freqüências semelhantes. Também no meio de héteros, homos, curiosos (sem aparente preocupação em se assumirem como bis ou não), como também entre crianças, tios, pais, avós e afins. Essa coisa de tentar retratar muita gente interagindo com muita gente, de idéias e ideais diferentes, é um trunfo de Alice. Isso porque não se trata apenas de uma visão pretensamente sem preconceito e otimista daquele mundo próprio da série, mas sim uma transposição convincente de pessoas que conseguem conviver entre o caos assombroso e opções que supostamente só SP pode oferecer.

Todo os percalços dos personagens e especialmente de Alice mostram pouco de genuíno à primeira vista. Mas, bem feita e bem amarrada como foi, a série transforma esse suposto defeito em uma qualidade principal: fala de muitos para muitos, sem a pretensão megalomaníaca de soar como verdade universal, e sem colocar o tempo todo (só às vezes) a mão atrás da cabeça do espectador enquanto o chama de burro.

O mais próximo que Alice chegou do segundo caso talvez tenha sido no começo (explicativo demais) e nos dois últimos episódios, quando flertou descaradamente com o moralismo e o melodrama, mas felizmente não avançou nesse relacionamento. Para terminar a série, como aconteceu como todos os episódios (com exceção do penúltimo, um ótimo média-metragem por si só), vem a voz off, que confirma ainda mais a idéia de uma menor pretensão revolucionária em detrimento de um maior alcance de um público com bem pouca, mas ainda assim com um mínimo de inteligência. No final das contas, em meio a deslizes de um excessivo didatismo, a série funciona como tentativa válida de popularizar o que, apesar de pouco original, é bem feito.

Mini-série: Alice (idem, Brasil, 2008)
Direção geral: Karim Aïnouz e Sérgio Machado
Elenco: Andréia Horta, Carla Ribas, Regina Braga, Vinicius Zinn.

8mm
Sergipe triste
Um ponto realmente negativo (e discreto) da série diz respeito ao irritante retrato de um sergipano, que aparece acho que no penúltimo episódio. Ver uma série coordenada por um baiano e um cearense leva a crer que, quando vier à tona um personagem nordestino, ele seja tratado com um olhar diferente do ‘tipo exportação’, projetado por quem não conhece pra quem não conhece. O problema é que o cara (interpretado pelo ótimo soteropolitano João Miguel, de O Céu de Suely), empresário radicado em São Paulo há não sei quanto tempo, é um mal educado e matuto rude do período jurássico, que, entre outras coisas, vê a mulher como um bicho que precisa “comer direito e sem frescura” – ou coisa do tipo. O retrato decepciona por vermos nordestinos falando de nordestinos como qualquer um não-nordestino com ojeriza à região (e provavelmente sem conhecer) falaria.

Capitu
Queria ter visto tudo, mas só assisti a um capítulo de Capitu (Brasil, 2008), de Luiz Fernando Carvalho. O problema é que a mini-série, como foi apresentada, diz pra você cancelar qualquer compromisso durante quatro ou cinco noites seguidas, em dias úteis e no fim de semana. Mas, no único episódio que vi, fui de um quase êxtase ao desapontamento com uma irritante obviedade de escolha – mesmo que dentro de uma suposta coerência autoral.
Primeiro fiquei feliz em ver alguém com coragem para colocar Black Sabbath na trilha sonora de uma adaptação da Globo e de Machado de Assis. Mas, acho que ainda no mesmo bloco, me decepcionei quando ouvi Money de Pink Floyd numa hora que algum dos personagens falava em dinheiro (ou falta de, aqui pouco importa). A escolha pareceu preguiçosa, já que a música toca pouco e não se sustenta como um momento marcante pelo casamento som-imagem, mas apenas como um reforço talvez previsível e desnecessário da situação. Ainda assim, pelo que li e pelo que não vi, a série pareceu no mínimo interessante.

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

Imagens em: http://www.alice-hbo.tv/

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Tudo Que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (*Mas Tinha Medo de Perguntar) (1971), de Woody Allen
* Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini
* Hair (1979), de Milos Forman
* E Sua Mãe Também (2001), de Alfonso Cuarón
* Eu, Meu Irmão e Nossa Namorada (2007), de Peter Hedges (cinema)
* Max Payne (2008), de John Moore (cinema)

* Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004), de Michel Gondry
* Pink Floyd ao vivo em Pompéia (1972), de Adrian Maben

Um comentário:

um báu disse...

Fico no time dos "sem paciência" para séries. Concordo com toda a questão da disciplina excessiva e preocupação com a dependência (rs). Mas li todos os comentários a respeito de Alice e apesar de o tema ser um tanto comum, acho muito interessante que exista séries/filmes que tragam essa gama de olhares acerca das "pós-metrópoles" (termo usado por Fernando Mascarello em "Cinema dos Anos 90" em referência as megacidades, carregadas de características da pós-modernidade como mutação cultural, diversidade, elementos fragmentados,impessoalidade e blablabla). Logo as diferentes formas de articulação do indivíduo em grupos, a cotidianidade, os encontros e desencontros, o acaso, enfim, todo o conflito em torno do indivíduo/pós-metrópole se apresenta como universo vasto aberto à distintas abordagens. Há muito o que explorar, não só mundialmente como nacionalmente. São Paulo me surpreendeu em Ensaio sobre a Cegueira.

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