- O diretor de um circo de pulgas deixa que seus artistas lhe chupem o sangue.
- Eu não gosto de pulgas.
- Nem eu.
- E por que você disse isso?
- Não fui eu, foi Bergman.
- E por que ele disse isso?
- Não sei. Quando tentei falar com ele, o celular tava desligado.
- Mas e o que ele quis dizer com isso?
- Ele quis dizer o que ele disse, ora – e se não quis, dá no mesmo, porque leio o que ele disse, não o que ele quis dizer.
- Não precisava ser indelicado.
- Você pediu... Mas, pra falar a verdade eu tô retado também...
- Why?
- Ontem, eu disse ontem, meu editor falou que queria o texto pra anteontem. Isso não é legal.
- Isso, na verdade, é um sinal...
- De quê?
- De que seu editor não quer publicar seu texto.
- Desconfio disso.
- Desconfia? A ingenuidade é uma bênção...
- Benção é ele ter um colunista como eu.
- Que, numa coluna de cinema, fala mais dele do que de filmes?
- Não, hoje tô falando de Bergman, por exemplo. Até porque ele, meu editor, deve achar que, nos textos, sou a soma das velocidades de Bergman e Fassbinder.
- Já seria ótimo se você fosse a metade da substração do talento de um pelo outro.
- Quem sobre quem?
- Eles podem co-existir tranquilamente. Graças a Deus, aos Lumière, ou, sei lá, aos golfinhos do Parque Costa Azul, o cinema não é uma competição.
- Pois é, mas o assunto hoje é Bergman, porque não me lembro de já ter falado dele por aqui. E porque já escolhi a citação das pulgas pra poder tentar dar início ao texto menos elaborado que já escrevi.
- Nossa, você nem terminou e já acha que ele é o pior.
- Não necessariamente o pior, mas o menos pensado. Isso me entristece.
- Você tá como Elizabeth Vogler em Persona?
- Eu tô com a complexidade dos sentimentos de quase todo personagem de Bergman. Com a diferença de que ainda tenho a preocupação de ter que pagar minhas contas.
- É impressão minha ou você quis diminuir os personagens de Bergman?
- Eu não disse isso.
- Mas deu pra interpretar assim.
- O problema não é meu, nem de Bergman. Muito menos de Alma. Falando nisso, quero rever Persona.
- Vá lá.
- Ainda não. O texto tá curto.
- Não se esqueça, seu editor pediu o texto pra anteontem.
- É verdade...
- Pois é, sua desculpa é aceitável e sua vontade é admirável, porque Persona é um filmaço.
- Obrigado...
- Vá logo, vá.
- É, vou partir mesmo.
- Beijo...
- Beijo...
Ele deixa o computador.
Rigor
Não estou entre os maiores entusiastas de Ingmar Bergman, mas Persona (1966) – assim como Elizaberth Vogler e Alma, interpretadas por Liv Ullmann e Bibi Andersson – é um filme absurdo. Que fica ainda mais absurdo quando vemos Bergman dizer que a improvisação, ali, é praticamente nula, que o texto “foi rigorosamente concebido”. Um monstro esse Ingmar.
Ah, Suécia...
Falando em Suécia, bom lembrar de outra maravilha escandinava, o Deixa Ela Entrar (2008), de Tomas Alfredson. Uma coisa dessas que faz você acreditar como os filmes de gênero precisam continuar a existir – e a serem reinventados. Vampiros, terror, morte e sangue, tudo bem protocolar, transformado em um filme de amor – mas não só – bem pessoal.
* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição de dezembro (também impressa) do Jornal Direitos - www.jornaldireitos.com.br.
2 comentários:
Texto espetacular.
Pois eu sou dos grandes entusistas do Bergman, muito provavelmente o cineasta de quem eu mais vi filmes. E apesar de gostar de Persona, está longe de ser meu favorito, posto que pertence a Gritos e Sussurros. Tá para nascer um cara com tanto talento para escrever histórias tão profundas, com personagens tão complexos.
E Deixa Ela Entrar é mesmo uma belezinha, tipo de produto em grande carência no mercado. Belo e estranho.
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