segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O quarto de Rainer*

Uma suíte.
- Mari... tá me ouvindo?
- Oi... tô.
- Na coluna desse mês, quero falar de Bukowski e Nabokov.
Ela volta para o quarto, onde tenta andar sem as lentes.
- Na Cinebar?
- Isso.
- Ela é de cinema, Theo.
- É porque gostaria mesmo de falar de nós dois, mas preciso de uma desculpa pra isso.
- Através de Bukowski e Nabokov?
- Isso. A gente tem citado muito os dois justamente nesses dias. E acho que eles falam muito não só de gente, como até da gente.
Mari encontra as lentes – ainda incapazes de fazerem o mesmo com a camisa, a calça e os outros membros da família.
- Você bem sabe, adoro Nabokov, e até gosto de alguma coisa de Bukowski, mas espero que ele não fale muito da gente. Nem você como ele. Naquele documentário, o Born Into This, ele dá uma sequência de pontapés na mulher, a abestalhada com quem depois ele até casou. Lembra?
- Aham. Só não tenho certeza se foram vários pontapés, tapas, ou até, é possível, afagos bukowskianos. No fundo, e de um jeito bem próprio, ele amava as mulheres.
- Bukowski nunca amou as mulheres. Ele amava fêmeas. Ou melhor, trepava com elas – pra usar uma linguagem mais próxima da dele.
- Com mais ou menos freqüência, é normal pensar assim às vezes.
- E doente é transformar o às vezes em uma vez sem fim.
- Ah, Mari, os dois tinham escritas diferentes, vidas diferentes, e amavam de um jeito diferente. Pra resumir, Bukowski gostava de cerveja, Nabokov gostava de borboletas. Era o jeito de cada um encarar a solidão pra escrever.
- Ah... se for para falar em solidão, melhor a gente convocar Rilke.
- Dele eu só li Cartas a um jovem poeta.
- Que você adorou, e que, apesar de muito bom, eu acho uma das coisas mais fracas que ele já fez. Ele foi, inclusive, o primeiro grande culpado por minha obsessão por Alemanha e Tchecoslováquia. Você sabe, não é?!
- Sei, sim. E, conhecendo como te conheço hoje, nunca te visualizaria com um moreno e sul-americano como eu.
- Quando a gente se conheceu, saquei logo que você era a dose certa da mestiçagem brasileira, com algo de tcheco adquirido pela vida e pelos livros. Mas, tenha certeza, eu não abriria a boca, e muito menos o ouvido, se soubesse que você pensava que Rilke era uma mulher. Quer dizer, hoje tenho intimidade suficiente para me referir a ele como Rainer, não acha?!
- Hum... você lembra do primeiro nome de Fassbinder?
- Rainer também.
- Sabe o que isso significa?
- Hum..., murmura Mari, em estágio avançado, de encontro à camisa. Que...
- Você vai deixar sua blusa aí, voltar pra cá e fazer um Rainer comigo.
- Ahn?!
- A gente vai fazer um filho que vai se chamar Rainer. Agora. Que acha?
- A tá. Adorei a ideia. Principalmente por Rainer, lógico.
- Essa é a Mari sutil e cruel que eu conheço.
- Ô, Theo... é porque tenho que trabalhar. Você tá de férias.
- Eu escrevo, não tenho férias. Tenho é mais tempo livre pra ocupar com o teclado. E o mesmo vale pra você.
- O que vale pra mim é o seguinte, Theo: se não for trabalhar, fico sem emprego; se ficar sem emprego, a renda diminui; se a renda diminuir, passo a me preocupar em fazer dinheiro e, consequentemente, fico sem tempo pra ler e escrever.
Mari está pronta – mentira, ainda falta a jaqueta.
- Isso quer dizer..., sugere Theo.
- Que tenho que ir...
- E que quem escreve, na verdade, trabalha para não ter férias.
- É triste. E bonito. Mas tenho que ir... E a Cinebar, já tem um norte pra ela?
- Cinema, ora.
- Nabokov, Bukowski, Rilke...
- Estarão no meio.
- Não culpe o editor se ele perguntar para onde foi o cinema. Ou o bar. Sem trocadilho.
- Ele quer algo mais alcoólico que Bukowski? E mais cinematográfico que Rilke e Nabokov? Se sim, tenho do meu lado Fassbinder, que vale pela soma da maioria dos cineastas vivos.
- Verdade. E agora eu vou de verdade. Só pegar minha bolsa, já tô atrasada.
- Tá bom. Volta logo.
- Volto, sim.
- Bom trabalho...
- Obrigada, Theo... Beijo. E até mais...
- Té...
Mari abre a porta e sai, mas não antes de dizer.
- Ah, e coloque mais alguém de cinema no texto, viu?!
- Pode deixar...

A beleza do caos...
Dessa vez peguei emprestado Mari e Theo de O Pequeno Caos (1966), de Rainer Werner Fassbinder. O curta, que tem ainda o próprio Fassbinder com apenas 21 anos no papel de Franz, é uma coisa que transborda um inconsequente e contagiante afeto pelo ato de ir ao cinema. E de um jeito bem alemão – o que, embora eu sinta, não faço ideia do que significa.

... e d’água em pedra
Outra maneira – mais fácil (e nem por isso desinteressante) – de ter um contato indireto com a mente juvenil de Fassbinder é assistir ao Gotas d’Água sobre Pedras Escaldantes (2000), de François Ozon, baseado em peça que o gênio-prodígio bávaro escreveu com – não duvidem – 19 anos. Muito bom.

Maria Nabokowski
Born Into This (2003), de John Dullaghan, é o ótimo documentário sobre vida e obra de Charles Bukowski, que tinha alguma ligação também com cinema, mas no que não posso me aprofundar pela falta de espaço. Vejam o filme.
Com relação a Vladimir Nabokov, entre outras coisas, ele escreveu Lolita, com adaptações de Stanley Kubrick (1962) e Adrian Lyne (1997), e Desespero, no qual se baseou Desespero – Uma Viagem para a Luz (1978), de Fassbinder.
Já Rainer Maria Rilke, bem, parte dele está em Asas do Desejo (1987), de Win Wenders.
Ah, antes que me esqueça, o californiano Bukowski, na verdade, nasceu na Alemanha. Mari sabe do que fala.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (também impressa) de setembro do jornal Direitos http://www.jornaldireitos.com.br/.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostaria de saber que dia vc vai falar sobre o filme "Os Sonhadores"? E onde posso encontrar esse filme para locacao..gostei do tema e gostaria de assistir!
Aguardo resposta

Rafael Carvalho disse...

Outro que me falta, Fassbinder. Acho que vou tirar o final do próximo mês para dar conta de ver algumas coisas dele. Vi O Gotas D'Água e achei sensacional, texto primoroso.