sábado, 19 de setembro de 2009

Deixa Ela Entrar*



Sobrenatural lírico

De maneira não premeditada, em menos de uma semana assisti a quatro filmes do gênero – A Profecia (1976), O Príncipe das Sombras (1987), Deixa Ela Entrar (2008) e Arraste-me para o Inferno (2009) –, o que, se por um lado não passou de uma obra do acaso, por outro ajudou a potencializar o caráter específico (“estético” e “cultural”) do sueco Deixa Ela Entrar (Låt den rätte komma in – Suécia, 2008), de Tomas Alfredson.

Pouca coisa se tornou tão americana como os filmes de vampiros, e, para não ir tão longe, basta lembrarmos de Entrevista com o Vampiro (1994), Drácula de Bram Stoker (1992) e Martin (1977) – este de ninguém menos que George Romero. E isso para não falar nas séries Buffy – a Caça Vampiros (1997), True Blood (2008) e o recente fenômeno Crepúsculo (2008). Mas Deixa Ela Entrar, curiosa e felizmente (por conseguir uma voz própria em um meio já tão saturado), pouco dialoga com eles além do inevitável.

Como esperado, o clima aqui é frio e mórbido – como o da Pittsburgh tão estimada por Romero. A diferença é que, se a escolha do interior da Pensilvânia por si só representava uma locação propícia para a formação da atmosfera interiorana e relativamente longe de onde a maioria das coisas acontece (inclusive pedidos de socorro), aqui o pano de fundo é a própria metrópole: Estocolmo.

Nela, a distinção vem ainda maior graças a uma bem pessoal construção dos personagens e da maneira pouco usual (mas nem por isso narcisista) de filmar determinadas cenas. Cada morte, por exemplo, não só tem uma função narrativa (o que não acontece com outros filmes marcados pela gratuidade de homicídios) como traz um caráter emocional. Mesmo o mais frio dos assassinatos – o do começo do filme, talvez – é relativizado e visto com um olhar mais generoso com o passar do tempo.

Generoso, sim, porque Deixa Ela Entrar é quase um manifesto de um caráter humano dos vampiros. E talvez o melhor exemplo seja o momento em que Eli (Lina Leandersson), que tem “mais ou menos 12 anos há algum tempo”, diz a Oskar (Kåre Hedebrant) que “mata porque precisa”. Quando uma frase óbvia (dentro do mundo dos vampiros) como esta consegue ganhar uma conotação genuinamente emotiva, fica a certeza de que estamos diante de algo especial.

Como é, por exemplo, a cena da piscina. Alfredson mostra sangue e tensão de um jeito bem peculiar, sem que a inusitada escolha do enquadramento chame uma atenção maior do que o que ele mostra: mais até do que pela sobrevivência, a crueldade justificada pelo amor – com um lirismo que deve tornar a cena indelével para a maioria que assistir.

Embora, é verdade, a trilha sonora às vezes soe invasiva (sublinhando uma sensação já perceptível), ela pouco compromete e não deixa de estar em certa sintonia com o filme. Que consegue terminar de um jeito gratificante e otimista, de forma que o resultado se liga menos a uma concessão do que a uma coerente demonstração da força do relacionamento e do ideal defendido. Muito bom.

Filme: Deixa Ela Entrar (Låt den rätte komma in – Suécia, 2008)
Direção: Tomas Alfredson
Elenco: Kåre Hedebrant, Lina Leandersson.
Duração: 115 minutos

8mm
Suécia

Guardadas as devidas proporções (de talento e de quantidade de filmes – ambos ainda em aberto), Alfredson faz com o filme de vampiro o que alguns italianos, e especialmente Sergio Leone, fizeram com o western nos anos 60 – os western spaghetti. Independente de qual caminho o sueco tome (segundo o IMDB, vai pro quinto longa – nenhum em DVD oficial por aqui), que o talento esteja por aí.

Dia 28
Como a coluna fica no ar até o próximo sábado (antevéspera do dia), aproveito para divulgar a primeira exibição pública da versão definitiva de Do Goleiro ao Ponta-esquerda, documentário que dirigi como projeto de conclusão do curso de Rádio e TV na Uesc. A sessão única, ou pelo menos a única com data confirmada até agora, acontece no próximo dia 28, no Centro de Cultura Adonias Filho. A entrada é franca.

Filmes da semana:
1. Deixa Ela Entrar (2008), de Tomas Alfredson (****)
2. O Príncipe das Sombras (1987), de John Carpenter (***1/2)
3. Arraste-me para o Inferno (2009), de Sam Raimi (***1/2)
4. Os Sonhadores (2003), de Bernardo Bertolucci (***)
5. Tudo Sobre Minha Mãe (1999), de Pedro Almodóvar (***1/2)

* Coluna 70mm também publicada no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

3 comentários:

João Daniel disse...

Não acho o longa revolucionário,mas sim extremamente original e envolvente, por que além de trazer de volta o gênero para a Europa (alô Mario Bava e cia),o que já traz um climão todo especial, o faz de uma forma mezzo realista e muito bem calculada. A direção do ano.

E o final (as linhas a seguir contém SPOILERS) não tem nada de otimista, é na verdade uma das coisas mais cruéis dos últimos tempos: Oskar está destinado a cuidar da vampirinha até o fim da vida e,quem sabe, pode terminar (mal)que nem o antigo guardião dela. Sutil e aterrorizante.

Psiu: que elenco mirim maravilhoso o desse filme. Eu acreditei naquela menina!

Psiu 2: escrevi sobre o filme aqui. Texto apressado mas com as impressões de quando eu vi: http://aultimasessao.blogspot.com/2009/07/deixe-ela-entrar.html

Leandro Afonso Guimarães disse...

pois essa discordância só parece provar como o final do filme é fantástico. você olha o lado de um possível (ou até provável) final agonizante para ambos, eu vejo como uma diferença a princípio limitadora não impede que os dois dêem seu jeito de viverem o que querem. mas como esse jeito que querem é, no fundo, uma defesa de uma impossibilidade (como viver com alguém cujo instinto pode levá-lo a morte?), ela é (ou pode ser olhada) como uma visão otimista também.

Rafael Carvalho disse...

Caramba Leandro, eu tô louco pra assistir a esse filme sueco, só vejo falar bem e parece trazer um belo sopro de renovação ao gênero.

Dos filmes da semana que você aponta aí, acho o Tudo Sobre Minha Mãe uma obra-prima do Almodóvar (da filmografia dele só perde para Carne Trêmula). E também gosto bastante de Os Sonhadores. Se eu já vi alguma coisa do Carpenter, foi há muito, muito tempo e sem a devida noção de quem era.