segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Trabalho de ressaca*

Afonso e Fernando estão no final da pausa para o almoço, já de volta ao trabalho. Enquanto esperam pelo relógio, Afonso divaga sobre o seu namoro com Júlia, cujos créditos finais são acompanhados de uma melancólica trilha sonora em sua cabeça perturbada.
- Cara, fale a verdade. Eu tenho cara de otário?
- Não. Você tem cara de ressaca – crava Fernando.
- Tô falando sério, porra!
- Eu também. Na verdade, diria que sua cara é de vômito, mas fui delicado, já que você tá na fossa. A gente já dividiu apartamento, não me faça lembrar de suas manhãs de domingo, por favor.
- Assim você não ajuda em nada – lamenta Afonso.
- Quem não ajuda é você, que namorava a versão da atriz certa no filme errado. Júlia parece Penélope Cruz, ponto. O problema é que você pensava naquele doce tragicômico de Volver, sem nem desconfiar que ela estava mais para Jamón, Jamón.
- Não tem nada disso.
- A diferença é só que não teve Javier Bardem.
- Não, a diferença é que eu quis dar uma de Kubrick com ela.
- Ai, meu Deus, qual a blasfêmia da vez?
- Kubrick chegou a filmar mais de 100 vezes a mesma cena. Nosso namoro terminou 100 vezes antes de eu perceber.
- Mentira. Você percebia, porque ela falava, lentamente, em voz alta e em tom fonoaudiólogo – “acabou”.
- Não. Ela dizia assim – “não dá mais”.
- E literalmente nem dava mais. Você mesmo dizia que o sexo com ela não era grande coisa.
- O sexo da gente era como o Brasil. Com potencial para ser uma potência, mas sem potência para chegar nesse potencial.
- Você broxou, foi?
- Não, imbecil. Falo assim porque não era bom como poderia ser. Antes imaginava e pressentia, e depois comecei a perceber, que seria ótimo foder com ela. Digo, vamos falar foder mesmo, sem delongas. Mas o foder nunca foi tão bom nem com a freqüência que imaginava. E não necessariamente por culpa dela. Ou minha.
- Por culpa de Kubrick, na certa.
- Tem muito tempo que não vejo filme dele, que ficou enciumado e me castigou.
- Quem vai ficar enciumado é Alexandre, com essa sua indiscrição para flertar com Liliane.
- Sério? Tô como Al Pacino com Michelle Pfeifer em Scarface?
- Não. Comparado a você, Tony Montana é um lord.
- Ah, você tá de brincadeira, não tá?!
- Tô, mas você precisa tomar cuidado. Tá todo mundo junto aqui, trabalhando sério, o clima pode ficar chato.
- Ninguém mandou os dois escolherem a mesma profissão. E, convenhamos, ele é meio estúpido, além de quase feio. Ela é bacana demais pra ele.
- Gosto da palavra bacana. É simples e bonita sem ser ordinária. Igual a Liliane, que ainda é inteligente. Olhando outro lado positivo da coisa, rola mais afinidade entre vocês dois do que rolava entre você e Júlia.
- É verdade... mas não tô pensando em nenhuma das duas.
- Tá pensando em quê?
- Tô fazendo uma ligação entre o primeiro filme de Tarantino e minha relação com elas duas... e, acho, com a maioria das mulheres em geral – ou com as que me interessam, pelo menos.
- Que é que tem a ver Cães de Aluguel com elas?
- Não, não falo de Cães de Aluguel, falo do My Best Friend’s Birthday, de 1987.
- Não sabia desse dele. Mas o que é que tem nele, e o que é que ele tem a ver com Júlia e Liliane?
- É um média, que tinha pouco mais de uma hora, até um incêndio queimar o rolo final logo depois de pronto. Ficaram só pedaços, que obviamente não servem pra nada. Ou seja, o primeiro, e sempre inesquecível filho dele, simplesmente escafedeu-se. Como acontece com as mulheres e tudo de sua vida, mas como não deve ser com os filmes.
- É um jeito de se olhar – pondera Fernando.
- O outro é pensar em como ele está hoje.
- Você não tem como saber como Tarantino está.
- Sei como estão os filmes dele, é o que importa.
- Faz sentido.
Afonso olha o relógio.
- ... já tá na hora de a gente voltar também. Qual a cena de agora?
- A do jantar entre Liliane e Alexandre – diz Fernando.
- Isso. Você já conferiu a luz?! Já, já... Vamos chamar o resto do pessoal para a gente recomeçar, beleza?!
- Tá ok...
Os dois saem. Oito minutos depois, recomeçam as filmagens. Que acabam no dia seguinte. A partir de quando Afonso volta a cultivar a mesma cara de ressaca. E a ansiar por outro dia de trabalho.

Nice americana
As adaptações de hoje são de Julie (Jacqueline Bisset), Alphonse (Jean-Pierre Léaud) e Ferrand (François Truffaut) – com fidelidade a Alexandre (Jean-Pierre Aumont) e Liliane (Dani). Eles estão na prova de amor que é Noite Americana (1973), do próprio Truffaut. Que amava as mulheres e o cinema – e que faz uma falta danada.

Espanha e EUA
É bom conseguir encaixar, no texto, somente filmes que gosto. Desde os diferentes tipos de breguice de Jamón, Jamón (1992, de Bigas Luna) e Scarface (1983, de Brian de Palma) até Cães de Aluguel (1992, de Quentin Tarantino) e Volver (2006, de Pedro Almodóvar) – os responsáveis pelos dois últimos, para mim, estão entre os maiores vivos. Que assim continue(m).

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (também impressa) de agosto do jornal Direitos http://www.jornaldireitos.com.br/.

Um comentário:

Rafael Carvalho disse...

hauhauuahuhua
Essa coluna sua é muito massa. Ri demais!