sábado, 13 de junho de 2009

Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado*



Ouvir para dizer... o quê?

Da escolha do título à última frase, Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (idem, 2009, Brasil), de Joel Zito Araújo, me fez pensar basicamente em duas questões o tempo todo. A primeira delas me veio à mente ao lembrar que, dias antes, num programa esportivo, o jornalista Paulo Vinícius Coelho se referiu à enfim confirmação da transferência de Kaká para o Real Madrid como uma espécie de notícia que não era mais novidade – num chavão do jornalismo, seria como se o homem ameaçasse morder o cachorro tempo suficiente para tornar a mordida (do homem) esperada, “natural”, quase uma não-notícia. Já o segundo ponto diz respeito à presença de um tipo de tom acadêmico, que (basicamente via uma quase sempre destoante narração) entra e sai do filme sem pedir licença, e que alguns podem achar inevitável pelo diretor ser quem é.

Joel Zito, mineiro autor de vários médias-metragens, documentários, vídeos institucionais e campanhas eleitorais para TV, trata em Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado de um dos mais conhecidos produtos de exportação do nosso país: as mulheres. A visão da brasileira que mais agrada a Europa (inevitável usar generalizações não só pelo tema, mas pelo que o filme em parte repete) é não só de uma negra ou mulata, sorridente, gostosa e fogosa, mas também de uma “putana”, como diz um italiano – como poderia dizer também um espanhol, um holandês ou um alemão, por exemplo. Da mesma maneira, não é nova a ideia de mulheres nordestinas pobres que partem para lá – cientes ou não da situação exata onde se metem, com ou sem parceiro certo, com ou sem prostituição. Nesses pontos, perde-se um tempo precioso em depoimentos que apenas reforçam a visualização do “primeiro mundo” em relação às mulheres daqui. O filme-denúncia funciona como tal apenas para parte desse estrangeiro, e muito pouco para o brasileiro.

Outro tema abordado é recorrente na carreira de Joel Zito: o negro. Defensor de que a produção audiovisual brasileira prega um branqueamento da população, ele já disse que “nossa estética é racista porque considera os seres humanos de características arianas mais belos, mais inteligentes e superiores. Assim como Hitler considerava”. Em Cinderela, Lobos e um Príncipe Encantado, apesar de não tão extremo, a defesa de seu ponto de vista racial (onde os negros são racistas com os negros) soa como uma escolha de uma verdade pessoal que, talvez cambaleante demais para ser sustentada como uma regra dentro do próprio país (principalmente se comparado a outros cujos passados apresentam problemas étnicos constrangedoramente maiores), outra vez parece um produto sob medida para exportação. Um ponto decepcionante, por se tratar de alguém de dentro falando sobre gente de dentro, mas com um olhar que flerta demais com o de fora, que geralmente tem no mínimo miopia – e nunca usa óculos.

Verdade que o filme anda, e tem grandes momentos, graças aos depoimentos vistos como casos únicos, e não como partes de uma ou várias teses. Do cabeleireiro a prostitutas, passando por um travesti, quando opinam dentro do filme, eles se tornam indivíduos maiores que a referência inicial. Nas melhores cenas, a honestidade dos entrevistados, gente “comum” e “anônima” na maioria das vezes, nos lembra Eduardo Coutinho – e Edifício Máster (2002), mais especificamente –, mas o humor remete a American Pie (1999), quando rir um bocado não quer dizer que o filme seja bom.

Coutinho, por exemplo, dá ouvidos aos seus personagens para ele mesmo ter uma voz própria forte, que transborda fluidez e talento não só com gente e com o cinema, mas com um jeito de fazer cinema. Já Joel Zito parece um tipo de Coutinho que, para evitar uma simples imitação, traz para a tela o academicismo que pode diferenciá-lo – tem até pós-doutorado no setor de Rádio-TV-Cinema pela Universidade do Texas.

No final, com o “não sei mais quem é cinderela, lobo e príncipe encantado” e “quem sou eu para julgá-las?”, ele se prova incapaz de terminar o filme de maneira mais “audiovisual” e menos “didática”, sem recorrer a clichês supostamente humanistas – e narrados, ainda por cima. Ele passa um marcador de texto fluorescente no óbvio, como se tivesse que reiterar e justificar o fato de não achar uma solução “acadêmica” para o problema proposto. É uma pena terminar assim um documentário com material tão rico, prejudicado pela obsessão de se dar satisfações e de se colocar a própria voz maior que a dos outros – que, neste caso, carregam o filme.

Filme: Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (idem, 2009, Brasil)
Direção: Joel Zito Araújo
Duração: 105 minutos

8mm
Tragicômico

Num dos depoimentos mais interessantes do filme, vemos parte de um programa no qual vemos o repórter, numa caricatura populista, entrevistando um acusado de abusar de uma menor. O curioso é que o ele é um americano que diz não falar português, e o repórter, que não sabe inglês, chama uma colega da produção (aparentemente surpresa) para ajudar no diálogo. A expressão “a casa caiu”, que já tem um sentido específico e não literal (o que inviabiliza a tradução para “the house fell”, por exemplo), foi transmitida ao americano como “the house feels” – “a casa sente”. Toda a conversa parece programada para provocar o riso, com tradução e expressões faciais que parecem cuidadosamente escritas e descritas previamente – embora não ache que tenham sido. O adendo é que, se a cena é hilária (e muito), não deixa de ser triste, pois há gente que consiga levar a sério um episódio tratado daquele jeito.

Filmes da semana:
1. A Teta e a Lua (1994), de Bigas Luna
2. Perdidos na Noite (1969), de John Schlesinger
3. Cinderelas, Lobos e um Príncipe Encantado (2009), de Joel Zito Araújo (cinema)
4. O Espelho (1975), de Andrei Tarkovsky

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

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