sábado, 9 de maio de 2009

Sozinho contra todos*



Perigo: ser humano à vista

É complicado escrever sobre o choque causado por Sozinho contra todos (Seul contre tous – França, 1998), de Gaspar Noé, sem entrar nos seus desdobramentos. Isso porque muito do saldo da experiência passa pelo absurdo de seus últimos vinte minutos, depois de vermos a tela ficar preta e entrar em assustadora contagem regressiva: “Você tem 30 segundos para deixar a sala”. Quando chegamos aos cinco segundos, vemos piscar “perigo”. Mesmo revisto, o que vem depois continua sendo no mínimo ofensivo.

Gaspar Noé foi catapultado para o grande público com Irreversível (2002), onde temos a famigerada cena de estupro sem cortes. Mas quatro anos antes ele já exercitava o seu sentido iconoclasta de adepto do “cinema extremo” – Michael Haneke e Lars Von Trier são outros exemplos –, no qual aspas pedem passagem sempre que o desagradável vem à tona. Se normalmente a pergunta é “por que ou para que filmar algo”, muitas vezes o assunto dessa corrente é “por que não?”.

Por outro lado, mais do que um exercício técnico ou estético, Sozinho contra todos explora a potencialidade obscura do ser humano. Com a delicadeza de um Tiranossauro Rex faminto em frente à sua refeição, Noé fala sobre viver e sobreviver, genética e biologia. Isso via seu personagem, um açogueiro que perdeu mulher, filha e emprego, além de ir preso por assassinar quem ele pensou que tivesse violentado sua filha, que na verdade tinha menstruado pela primeira vez – essa história começou no média-metragem Carne, de 1991.

A partir daí, o enfoque é cada vez maior no personagem, o que leva o filme a uma vala comum de frases feitas sobre egoísmo e o pessimismo antropológico. Por outro lado, o ideal de um amor a si mesmo a cima de todas as coisas (com ênfase em “acima de todas as coisas”) é bem levado até o fim, quando Noé despeja no mesmo vaso ingredientes que podem despertar sentimentos que vão de um alívio redentor ao mais límpido nojo.

Essa capacidade de trabalhar com um único e agressivo ponto de vista e ainda assim dar a possibilidade da relativização é outra questão positiva em Sozinho contra todos. Enquanto seu personagem se desespera e pensa (via narração) sem parar, seu raciocínio se mostra afetado pela incessante tentativa de sobreviver e pouco traz de substancial e único de verdade. Quando age, ou vemos como poderia agir se seguisse parte de seus instintos, percebemos como o lado influenciado pelas circunstâncias pode levar a atitudes que, quando não relativizam a moral, simplesmente a ignoram.

Noé explora com força o que não é dito, mas pensado, a coexistência entre a moral e o ser – embora às vezes abuse de frases na tela, o que deixa a impressão de didatismo demais e audiovisual de menos. É verdade que muita coisa (Taxi Driver é um exemplo) já visitou território semelhante, mas Sozinho contra todos, se não funciona em tantos níveis, pode dizer que escolhe um campo bem menor para poder explorá-lo – ou pisoteá-lo –, e o faz com uma falta de cerimônia pouco antes vista. “Vejam do que ele, aqui representando o ser humano como um todo, é capaz. E vejam o que EU acho e como EU mostro isso”, grita Noé. Apesar da irregularidade, o nível que ele atinge é tão extremo e pouco acessível que dá vontade de amplificar sua voz com sessões abertas em praças públicas.

Filme: Sozinho contra todos (Seul contre tous – França, 1998)
Direção: Gaspar Noé
Elenco: Philippe Nahon, Frankye Pain, Blandine Lenoir
Duração: 93 minutos

8mm
Carência

São 18h15. Visto a camisa e apanho a carteira. Bebo água, confiro tudo, bato a porta. São 18h18, o filme é 18h40. De casa até o guichê do cinema, a pé, são de 15 a 20 minutos – tudo depende, é claro, do filme.
Ainda no primeiro terço do caminho, lembro que deixei o celular carregando – não tem ninguém em casa. Corro, pego, volto a onde estava quando a memória assumiu ser perversa. São 18h25. Acelero o passo, chego – com o fôlego de um dependente de nicotina sem fumar, peço o ingresso.
São 18h39. A sala está cheia, consigo sentar e esperar – sessão atrasa. As luzes se apagam, começam os trailers. O filme é X-Men – Origens: Wolverine. Dublado.

Filmes da semana:
1. Em Paris (2006), de Christophe Honoré
2. Amador (1979), de Krzysztof Kieslowski
3. A Marca da Maldade (1958), de Orson Welles
4. On Native Soil (2006), de Linda Ellman
5. X-Men – Origens: Wolverine (2009), de Gavin Hood (cinema)
6. Sozinho contra todos (1998), de Gaspar Noé
7. Uma Mulher sob Influência (1974), de John Cassavetes

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

Um comentário:

.'.Gore Bahia.'. disse...

Seul Contre Tous = AINDA não vi = DEVO ver. Sou a favor daquela frase "porquê não?", de Noé e cia. rss