sexta-feira, 30 de julho de 2010

À Prova de Morte*




















À prova de riscos


A sensação de ver e rever À Prova de Morte (Death Proof – 2007, EUA), filme de Quentin Tarantino anterior a Bastardos Inglórios (2009) e só agora lançado no Brasil, equivale à (para mim hipotética) experiência vivida por um piloto de Fórmula-1 durante uma volta em circuito ideal de alta velocidade. Embora já tenhamos uma noção, graças ao resto do espaço, de como a velocidade tende a aumentar, a largada acontece já próxima da primeira curva, e a volta se inicia lenta. As outras quedas de velocidade são cuidadosas pausas para evitar que piloto e público se entediam em meio a toda aquela velocidade e volúpia, a princípio latentes, e que atingem o ápice – e o consequente risco – em dois momentos: no final da primeira metade e, após outras freadas calculadas, no (pré) término. Essa parte final, dentro da modalidade popular, foi feita sob medida para ter a maior reta, disfarçada de duas devido a uma discretíssima chincane no meio de ambas. Graças a essa ínfima queda de velocidade, o circuito foi liberado pelas atuais normas de segurança. A observação, importante para a experiência, é que o piloto despreza não só quase todos os atuais mecanismos de controle, como quase todos os carros atuais – inevitavelmente mais seguros. Ou seja, a experiência, dentro do quesito velocidade, é a absurdamente mais crua que qualquer coisa feita nos dias de hoje.

Tudo em À Prova de Morte remete a um tempo e espaço, só que eles não dizem respeito apenas aos anos 1970 (com piscadelas para a década de 1950), nem somente às Grindhouses, dos filmes-B exibidos com cópias mal-tratadas. Sem cerimônia alguma, em meio a inúmeras auto-citações, Tarantino se assume como grife, com o cuidado de evitar que isso se transforme em puro exercício narcisista. Não temos um límpido e específico cinema retrô, nem uma egotrip. Em meio ao perigo assumido por flertar descaradamente com os dois casos, temos a mistura ideal. Primeiro um cinema, depois Tarantino; nessa ordem, mas com relevância nas duas qualificações.

Se comparado a Bastardos Inglórios, a depender do ponto de vista, mal parece o mesmo diretor. No último, ele é mais contido no ritmo, nos diálogos, com um flerte mais europeu e sóbrio com a narrativa de filme histórico. Que, por outro lado, jamais sobrepõe o caráter de reconfiguração, de ficção, de cinema; e a crença no meio pelo qual se expressa é, provavelmente, a maior ligação entre Bastardos e À Prova de Morte.

A falação desenfreada (que às vezes parece excessivamente acelerada), as sequências musicais, o blaxploitation, tudo remete mais a Cães de Aluguel (1992), Pulp Fiction (1994) e Jackie Brown (1997). Pode-se dizer que, se em Bastardos Inglórios ele atingiu sua maturidade como cineasta, em À Prova de Morte ele atingiu o ápice de sua adolescência. Só que a maioridade, nesse caso, não é superior à adolescência – nos dois casos, Tarantino mostra seus diferentes, talvez até opostos, melhores.

É verdade que a vingança permeia os quatro últimos filmes (completam a lista os dois Kill Bill) de Tarantino, mas isso não o torna monotemático – a vingança é, no máximo, a motivação, o ponto de partida para temas e resultados bem mais abrangentes. Entre outras coisas, Kill Bill é um filme de amor, e Bastardos Inglórios é uma reflexão sobre o cinema e sobre existir apenas nele (de diferentes maneiras, o que permeia toda a obra de QT).

Em À Prova de Morte, no entanto, temos uma homenagem não apenas ao passado, mas a um passado específico e, de certa forma, marginalizado: carros hiper-potentes, cinemas, seriados (até Vega$, idealizado por Michael Mann) e, principalmente, os dublês – antes de, muitas vezes, serem substituídos por computação gráfica. Prova é que, se a empatia por Zoe Bell (por ela mesma, que foi dublê de Uma Thurman em Kill Bill) é criada pelo mecanismo mais simples do “vou me vingar e você sabe o porquê”, a ligação com Stuntman Mike é simplesmente pelo carisma e pela sagacidade trazidos por Kurt Russell e por Tarantino. A homenagem aos filmes-B, aos filmes de slasher (diferença é a arma aqui: um carro), a maneira arriscada de ver (e às vezes suicida de fazer) filmes, tudo funciona como uma amplificação de um tipo de cinema e de pessoas – às vezes esquecidas.

No final da primeira metade, Tarantino se arrisca ao mostrar um acidente inacreditável, no qual ele não só sublinha sua maneira de filmar o ato, como passa um marcador de texto na perspectiva de todos os envolvidos. Ele não se expõe apenas uma vez em presunçoso acidente, e sim quatro vezes mais ao filmar todas as “opções” possíveis.

O que melhor descreve a experiência de À Prova de Morte não é somente uma mescla ideal entre energia e adrenalina, mas uma questão de fé. O resultado é obtido de tal maneira apenas no cinema, e graças a alguém que acredita piamente nele. Mesmo que de maneira distintas, ou também por isso, seus dois últimos filmes são a maior prova de uma religião.

8mm
Semcine (dia a dia)
Segunda-feira
Primeiro a exibição de Ao Sul da Fronteira (2009), de Oliver Stone, extremo oposto do que é veiculado, é verdade, mas que corre o risco de se tornar tão ingênuo quanto o que combate; vale mais por ser oposição do que por ser uma oposição a ser levada a sério.
No debate pós-filme, tivemos o co-roteirista Tariq Ali, paquistanês que vive na Inglaterra; Miguel Littín, chileno já conhecido do Seminário; e Gustavo Dahl como mediador. Uma monumental fome não me deixou ficar até o fim, mas pude ver Ali dizer, por exemplo, que algumas faculdades na Inglaterra (até na Inglaterra!) têm tirado Filosofia da grade curricular – e pelo que disse, não são exatamente exceções.
Ponto pior, no entanto, foi o caso de Dawson Isla 10 (2009), de Miguel Littín, previsto para encerrar a noite e que teve sessão cancelada graças a blecaute sofrido pelo TCA. Depois de fazer público de ioiô (“entrem na sala”, “evacuem a sala”), aproximadamente uma hora depois da queda de energia, sessão foi oficialmente cancelada; e posteriormente adiada para o encerramento do festival, amanhã.

Terça-feira
Só assisti ao Desajuste Social (1961), de Pier Paolo Pasolini. Bem acessível para seus padrões revolucionários, teve exibição prejudicada devido ao formato da sala do ICBA – Instituto Cultural Brasil-Alemanha. Graças à disposição das cadeiras para o teatro, ninguém fica em frente à tela. Crueldade com a coluna.

Quarta-feira
Ótima mesa redonda sobre montagem. Ao se falar sobre uma suposta autoralidade da função, Susan Korda (montadora bissexta e professora) disse que “o único autor do filme é o roteirista. Todos os outros são intérpretes”. Mais inspirada do dia, contou casos de Billy Wilder, Ridley Scott e Francis Ford Coppola, e disse ainda que duas das perguntas feitas nas test screenings (sessões teste antes dos filmes estrearem) que realmente funcionam são “onde você sentiu tédio?” e “onde você se sentiu confuso?”. Já Peter Przygoda (parceiro dos bons tempos de Wim Wenders) fez questão de salientar o caráter trabalhador da função, enquanto Ricardo Miranda (editor de, entre outras coisas, A Idade da Terra, de Glauber Rocha) falou muito na escola soviética, na qual é especialista. Isabelle Rathery (que já trabalhou com Jacques Doillon e Walter Salles), embora aparentasse muito conteúdo, pareceu se debater entre o esforço em falar novamente o português e o simples rebater o debate. Que, infelizmente, perdeu o interesse quando começou a eterna (e geralmente infrutífera) discussão sobre indústria americana e autoralidade europia – insuflado até por um espectador, quando microfone veio para plateia. O que faz sentido, e que dá boas conversas de bar, mas não dá para gostar de boas conversas de bar em um seminário com pessoas que podem oferecer bem mais.
À tarde não aconteceu debate nenhum, até onde vi. Em quase um hora, um dos quatro presentes sequer tinha se apresentado, graças a longas auto-promoções e poucas idéias de fato sobre O Presente da Imagem em Movimento. Valorizei meu tempo.

Quinta-feira
Embora tenha fugido do tema (Dramaturgia nas Telas), mesa redonda valeu especialmente por Lucrecia Martel, que se juntou a Susan Korda como a que mais acrescentou ao Seminário através das palavras. A diretora argentina (O Pântano, Menina Santa) falou sobre a dificuldade histórica de seu povo reconhecer o castelhano como um idioma cinematográfico. De maneira bem pessoal, e deixando clara que se tratava de uma impressão, lembrou que, na Guerra das Malvinas, o governo mentia ao dizer que o país estava ganhando, o que – na opinião dela – contribuiu para uma descrença do povo no seu próprio idioma. No entanto, graças ao mesmo conflito e no decorrer do tempo, rádios passaram a não tocar músicas inglesas, o que abriu espaço para a música em espanhol. O que trouxe uma nova identificação, uma certa confiabilidade do povo com o idioma.
Martel também falou de sua estreita ligação com o som, uma vez que as histórias ouvidas na família que funcionaram como principal motivação para a carreira de cineasta. Lembrou ainda a importância de sotaques, de diferentes maneiras de se expressar, e (pena não lembrar citação exata) deu uma linda alfinetada no assassinato que a TV faz com a língua falada e suas variantes.
O franco-israelense Ariel Schweitzer deu uma amostra do material do brasileiro-israelense David Perlov, e seu Diários de Perlov, cujos 10 minutos de projeção foram o suficiente para atrair algum interesse. Dois brasileiros também contribuíram, perdão, mas me foge agora o que falaram.
Na Oficina de Montagem, à tarde, Susan Korda voltou a se mostrar espirituosa, com boa didática e capacidade para diálogo. Mostrou imagens de Tubarão e Bonnie e Clyde, assumiu ser influenciada por Walter Murch (montador de Apocalipse Now, O Paciente Inglês e tem no livro Num Piscar de Olhos uma das bíblias da edição) e se mostrou claramente americana. Mesmo muito boa, e bem intencionada ao querer fugir um pouco (e só um pouco) da parte obviamente estúpida dos screening tests de Hollywood, debate caiu bem ao mostrar um curta e pedir opinião do público. Ela fez questão de dizer e repetir que espectadores não deveriam fazer perguntas, mas depoimentos. Na 30ª, ainda tinha gente que questionava. Educada e paciente, essa Susan.

Ps1: Em O Sarcófago, tão interessante quanto falho curta de Daniel Lisboa, áudio do TCA voltou a irritar. No filme seguinte, já ok.

Ps2: Nos Filmes do mês, não entra nada do Semcine – que vai até amanhã (31).

Filmes da semana:
1. O Escafandro e a Borboleta (2008), de Julian Schnabel (DVDRip) (****)
2. Juana La Loca (2001), de Vicente Aranda (**1/2)

Semcine (vistos até quinta-feira – 29):
1. Ao Sul da Fronteira (2009), de Oliver Stone (Teatro Castro Alves) (**1/2)
2. Desajuste Social (1961), de Pier Paolo Pasolini (ICBA – DVD) (***)
3. Immobilité (2008), de Mark Amerika (Teatro Castro Alves) (aguentei só dez minutos)
Curtas:
4. O Sarcófago (2010), de Daniel Lisboa (Teatro Castro Alves) (**1/2)
5. Six Dollar Fifty Man (2009), de Mark Albison e Louis Sutherland (**1/2)

Filmes do mês:
10. Um Americano em Paris (1951), de Vincente Minelli (DVDRip) (***)
9. O Professor Aloprado (1963), de Jerry Lewis (DVDRip) (***)
8. O Show deve continuar (1979), de Bob Fosse (DVDRip) (***)
7. Cabaret (1972), de Bob Fosse (DVDRip) (***)
6. A Riviera não é Aqui (2008), de Dany Boon (Cinema do Museu) (***1/2)
5. Toy Story 3 (2010), de Lee Unkrich (Cine Orient – Shopping Barra) (***1/2)
4. De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick (DVD) (****)
3. O Escafandro e a Borboleta (2008), de Julian Schnabel (DVDRip) (****)
2. À Prova de Morte (2007), de Quentin Tarantino (UCI Multiplex Iguatemi) (****1/2)
1. La Jetée (1962), de Chris Marker (DVDRip) (*****) – curta

* Coluna 70mm também publicada no www.pimentanamuqueca.com.br.

2 comentários:

Genny Xavier disse...

Querido,
Eu juro que até tento gostar do Tarantino...até porque respeito todos os amigos que gostam dele como bons apreciadores de cinema...mas eu não consigo ver a grandiosidade exposta nos shows caóticos de sua estética...
Caso eu esteja comentendo uma heresia, que me perdoem...rss...mas gosto é gosto, cada um tem o seu.
Beijos...como anda você em terras soteropolitanas?
Genny

Leandro Afonso Guimarães disse...

Haha,

não é heresia nenhuma, Genny. você é mais uma pessoa que respeito e que não gosta de Tarantino. muitas vezes são apenas diferenças na maneira de percepção e de absorção de energia, de conteúdo - e a definição de ambas.

e, convenhamos, seria um saco se todo mundo gostasse dele, rs.
as coisas aqui andam... deliciosamente perigosas. entre frilas, projetos, propostas e incertezas, dá para se virar - e tô gostando. é o que importa.

beijos

(agora que fui ver como andava em falta com a leitura de seu blogue. vou tirar o atraso agora!)