segunda-feira, 13 de julho de 2009

Marlon Brando me ligou*

Em uma locadora, a sessão de clássicos europeus é habitada por Natália e Marcos – recém migrado de território asiático. Ela segura um DVD em uma mão e fuça com a outra, enquanto Marcos apenas observa – a prateleira. Não acostumado à falta de coordenação motora de Natália, o filme escorrega e cai, antes de ser prontamente apanhado por Marcos. A queda foi um acidente, mas essa certeza só nós temos – além, é claro, da própria destrambelhada. Marcos, na dúvida, acha que aquilo foi um descarado convite ao ato – de ver filmes, pelo menos.
- A Aventura? Meu Antonioni preferido..., diz ele, que acha o filme bonito. E um saco.
- Hum... vou rever... – responde Natália, querendo sublinhar que aventura mesmo foi o pouso de emergência do DVD.
- Gostou quando viu?
- Um pouco.
- Eu também não gostei muito de primeira, mas depois adorei...
- Que assim seja comigo... E dele, você gosta assim também? – pergunta, apontando com o queixo para a camisa de Marcos, uma homenagem a O Selvagem, de 1953, e Marlon Brando.
- Gosto sim, mas não acho o melhor Brando da época. Até pelo filme, prefiro ele em Uma Rua Chamada Pecado.
- Mas ali tem muito do texto de Tennesse... Williams... que é f... fantástico!
- Eu prefiro Alabama Whitman...
- Como?
- Eu não li a peça original dele, mas dizem ser muito boa mesmo...
- É ótima, não muda muito do filme não.
- E de O Selvagem, você gosta?
- Gosto, mas vi há muito tempo. Só lembro de Marlon Brando dono de cada cena no filme...
- Ele tinha essa mania...
- É, é fácil ser bonito. Difícil é ter o talento dele. Johnny Depp que o diga...
- Como assim?
- Digo, Johnny Depp é basicamente uma versão atual e piorada de Brando. Além de bom ator e com carisma, tem aquela beleza que consegue agradar a todo mundo sem ser banal, e tem presença de cena. A câmera não só gosta como tem ciúmes deles, sabe?!
- A câmera sempre teve bom gosto. E problemas com a monogamia.
- Pois é... mas o ponto é que, quarentão quase cinqüentão, Johnny Depp não faz o que o Brando quarentão e cinquentão fez nos anos 70, com O Poderoso Chefão e Apocalipse Now. Eram papéis nada a ver com o Brando dos anos 50, que já tinha revolucionado tudo. Já Johnny Depp fica entre Jack Sparrow e as bizarrices de Tim Burton, o que ele já fazia desde antes de ser alguma coisa...
- É, faz sentido... – diz Marcos, que sente o vibrar de seu telefone. Olha, vê que é seu irmão, e discretamente recoloca o celular no bolso. Volta seu pensamento à conversa e, embora não concorde exatamente com Natália, percebe que a ideia dela flerta com um mínimo de nexo. Para evitar desavenças, continua...
- Mas Brando é Brando... E Coppola é Coppola...
- Não sou fã de Coppola, o Francis... na verdade até que gosto dessa fase anos 70, mas só dos dois Chefões e de A Conversação. A partir de Apocalipse Now, que ainda gosto, ele fica meio comum...
- Comum?
- É... pra resumir, digamos que no começo ele parecia um diretor que conciliava talento e pretensão, com lapsos de autor forte, quase a estampa de gênio. Depois ele continuou como um diretor que conseguia um equilíbrio entre talento e pretensão, só que burocrata demais e autor de menos pro meu gosto... – justifica Natália.
- Não gosto de cravar essas coisas, sempre mudo de ideia, mas acho que Apocalipse Now é o melhor filme de guerra que eu já vi. Aliás, tem Vá e Veja... e, ah meu Deus, tem Underground de Kusturica também...
- Eu tento, mas não consigo gostar de verdade de Kusturica...
- Você apela pra Marlon Brando pra desmerecer Johnny Depp, fala mal de Coppola e, o pior, consegue não adorar Underground, o atestado definitivo de escrotidão; você merece morrer sozinha e sem filmes, sua abestalhada!, pensou, antes de dizer... - Tente mais, ele vale a pena...
Marcos sente o telefone outra vez. Enquanto o traz para o ouvido, gesticula um pedido de licença para Natália, que não larga Antonioni e continua sua busca.
- Alô?!... Sim... Tô na rua ainda... Não, não devo demorar não. Só pegar uns filmes aqui e vou pra casa... Pronto, tá bom então... beijo... tchau.
Marcos recoloca o celular no bolso e caminha para a sessão nacional. Ele não falava com seu irmão, nem com sua irmã – muito menos com Sofia Coppola. Na verdade, ninguém ligou: era apenas um lembrete.

Underground
Marcos e Natália são empréstimos aportuguesados de Marko (interpretado por Miki Manojlovic) e Natalija (Mirjana Jokovic), partes integrantes da coisa linda que é Underground – Mentiras de Guerra, de Emir Kusturica. O melhor filme tragicômico de todos os tempos da última semana, que tem a versão nacional do DVD distribuída pela Lume Filmes, ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 1995.

Trabalho
Deve ser bom ver Apocalipse Now (1979) e Underground (1995) no mesmo dia, com cada diretor falando de um conflito referente ao seu país, com guerras, relevância de seus resultados e tons muito diferentes de cineasta para cineasta – o que talvez seja o melhor da experiência. Só é preciso muito, mas muito tempo livre para a sessão dupla. Underground, cujo primeiro corte de Kusturica tinha bondosas 5 horas e 20 minutos, tem 170 minutos, contra 202 da versão redux de Apocalipse Now. Seja como for, uma boa maneira de ocupar quase dois turnos.

* Coluna Cinebar originalmente publicada na edição (impressa) de julho do jornal Direitos http://www.jornaldireitos.com.br/.

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