sábado, 11 de julho de 2009

Maradona por Kusturica*



Simplicidade entre egos

Maradona por Kusturica (Maradona by Kusturica, Espanha/ França, 2008) remete, desde o título, a quase um abalo sísmico. Além de gênios, ou no mínimo “vitoriosos” em suas áreas, ambos são muito conhecidos – e não necessariamente reconhecidos – pelo que falam fora dela. Trata-se, portanto, de um encontro de gente que faz absurda questão de se expressar. E o resultado desse encontro, que tenderia a ser um debate entre surdos que pensam parecido, é no mínimo singular – embora decepcionante se lembrarmos do que já fez Emir Kusturica: palma de Ouro em Cannes por Underground – Mentiras de Guerra (1995) e Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios (1985).

O Kusturica músico, com sua guitarra e bem à vontade no palco, é basicamente o primeiro contato visual que temos com o filme, e um dos mais simbólicos. A cena nos mostra que a trilha sonora, para o diretor (nascido na Iugoslávia – Sarajevo, hoje Bósnia –, mas de etnia sérvia), mesmo num documentário, é quase obrigatoriamente uma eterna protagonista. E que, em muitos momentos, a ideia dele é se apresentar não apenas confortável diante daquele sobre quem fala, mas também fazer o que lhe vier à cabeça.

Prova disso vem poucos minutos seguintes a essa abertura. Kusturica liga praticamente metade de sua obra à vida de Maradona e família, antes de, ainda no primeiro terço do filme, refletir sobre sua posição como cineasta diante do que faz. O sérvio admite se sentir como o que sempre condenou: um paparazzo à espera da figura conhecida para invadir sua privacidade. Sem nenhuma ligação narrativa ou documental com o personagem, o pensamento traz uma honestidade que não glorifica, mas apenas expõe mais o diretor.

Essa questão entre biógrafo e biografado se torna ainda mais curiosa com o passar do filme. Especialmente (mas não só) quando não fala de si, Maradona solta intermináveis frases polêmicas (com alguns lugares-comuns que podem irritar), geralmente carregadas de paixão, aparentemente deixadas por Kusturica não para sublinhar a muitas vezes incoerência e egolatria de Don Diego, mas por achar importante amplificar uma voz que o sérvio vê como a de um líder em falta no mundo de hoje.

A própria voz do diretor, inclusive, também aparece acompanhada de um razoável ego, não obstante completamente distinto do hoje técnico da seleção argentina. Kusturica fala de seus filmes anteriores, do processo e, graças a uma conversa não mostrada com a esposa de Maradona, até de como ele, Kusturica, não conhece as mulheres – no ápice da amplitude entre o teoricamente essencial para o filme e um hipotético diário do diretor.

Outro momento chave começa quando assistimos a Maradona cantar uma música dedicada a ele. Inicialmente, nada de demais, até tudo no ambiente carregar uma emoção que leva Kusturica, com uma sensibilidade que nunca lhe faltou, a deixar o poder da cena impregnar o filme. O que ele volta a repetir próximo ao final, novamente com música e Diego presentes.

Apesar desse amor claro, e do indiscutível tato de trabalhar com trilha sonora em seus filmes, é triste (não exatamente pela escolha, mas pelo uso) ver Kusturica abusar de God Save the Queen, do Sex Pistols. Ela entra em animações que, se a princípio soam simpáticas pelo que foi comentado antes, depois de um tempo incomodam por uma repetição que flerta com uma preguiça, e que, atrelada ao “gol do século”, passa uma triste impressão de um Maradona apegado (para não dizer limitado) demais àquele jogo – contra a Inglaterra na copa de 1986, com a Guerra das Malvinas ainda bem fresca especialmente para a Argentina.

Bom dizer ainda que Kusturica, por outro lado, não tenta se limitar ao simples perdão ou condenação, mesmo com um personagem marcado por atitudes e características de ligação fácil com o maniqueísmo. Ele não é cruel, mas também passa longe da condescendência. No material de arquivo estão incluídas imagens de uma das maiores brigas do futebol europeu, entre Athletic Bilbao e Barcelona, na época clube de Maradona, que desfere pontapés e voadoras em quem vê pela frente; além de momentos dele em Nápoles (onde é Deus), nervoso, irritado e, literalmente, marcado por “não-me-toque’s” – para não falar de outro que mostra Diego em aberta hostilidade a todo um estádio.

Em meio a tamanha intensidade inerente ao personagem, o equilíbrio entre ambos refletido pelo título é também obtido no resultado, bem sóbrio. Verdade que a grande presença da questão política é maior que sua força real, que intimismo e caráter pessoal às vezes se confundem com desleixo e divagações fora de lugar, e que o filme não está perto do que de melhor Kusturica já fez. Também é impossível, contudo, negar o tom pessoal desses poréns, e os (poucos) grandes momentos do filme, que compensam, ou tentam compensar, a irregularidade dentro de 90 minutos.

Filme: Maradona por Kusturica (Maradona by Kusturica, Espanha/ França, 2008)
Direção: Emir Kusturica
Elenco: Diego Armando Maradona, Emir Kusturica
Duração: 90 minutos

8mm
Cá e lá

Num paralelo com Pelé Eterno (2004), de Anibal Massaini Neto, impossível salientar quão diferentes são os dois filmes. Desde o toque autoral e posicionamento ideológico (em que vale a discussão sobre a necessidade desse segundo) até o valor informativo-documental, passando pela pieguice – e pela falta de tudo isso. Seja como for, nenhum dos dois é desprezível.

Não sei
Embora ainda ache um bom filme, Maradona por Kusturica foi, pelo menos pra mim, claramente prejudicado por uma revisão. O que, se definitivamente não é uma coisa boa, é também bom relativizar, já que ainda me visualizo revendo-o dentro de pouco tempo. Mais até, por exemplo, do que Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios, que acho melhor. Não sei explicar o porquê.

Filmes da semana:
1. Novo (2002), de Jean-Pierre Limosin
2. Fanny e Alexander (1982), de Ingmar Bergman
3. Maradona por Kusturica (2008), de Emir Kusturica
4. A Ascensão (1976), de Larisa Sheptiko

* Coluna 70mm publicada também no http://www.pimentanamuqueca.com.br/.

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