sábado, 22 de novembro de 2008

Ensaio sobre a Cegueira*



Apocalipse quase didático

Ensaio sobre a Cegueira (Blindness, Canadá/Brasil/Japão, 2008), de Fernando Meirelles, é o projeto mais ambicioso do diretor paulistano até hoje, que ficou mundialmente conhecido por Cidade de Deus (2002), pelo qual concorreu ao Oscar de melhor direção, e que depois dirigiu O Jardineiro Fiel (2005). Agora ele dirige a obra adaptada do livro de José Saramago, publicado em 1995, quando Fernando Meirelles já tentava convencer o autor português a vender os direitos para ele filmar a obra – o que só veio acontecer 13 anos depois. Pensar nisso, e na capacidade do brasileiro dirigir obras pelo menos bem-acabadas como as duas citadas, faz crescer a expectativa para um projeto como esse e, depois do resultado final, faz também aumentar a decepção. Por mais que a obra consiga flertar com a genialidade, por outro lado, ela às vezes soa preguiçosamente óbvia e repetitiva.

Desde o Semcine (Seminário Internacional de Cinema), que aconteceu há quatro meses em Salvador, César Charlone (diretor de fotografia de Meirelles) já havia comentado sobre a fidelidade do filme à obra escrita. O próprio Charlone “retirou” parte do seu crédito na fotografia do filme, ao dizer que a idéia dos tons brancos, quase lácteos, já estavam claras no livro o escritor português. Ele só faltou falar (algo parecido): “Saramago que dirigiu a fotografia”.

Fotografia, aliás, que desde a primeira pessoa acometida pela cegueira sem precedentes, não só é fiel ao livro, enquanto cegueira branca, como incomoda quem assiste. O filme abusa de sua pupila, que em várias seqüências se acostuma a um branco-estourado, e em outras tem que se ajustar para um tom escuro que camufla praticamente tudo que está na tela.

Esses dois tipos extremos de imagem (principalmente o primeiro) são inicialmente interessantes no seu resultado, já que é passada a idéia de desconforto sentida pelos personagens. Por outro lado, soam evidentes demais, e esse desconforto pode atingir um grau de impaciência que, pelo menos no meu caso, fez as duas horas do filme parecerem dois dias. Já as imagens turvas, principalmente pelos momentos em que aparecem, passam a impressão de que Meirelles quis amenizar cenas apocalípticas e duras que exploram como poucas obras o lado tão obscuramente instintivo do ser humano.

Esse peso caótico do filme impressiona e pode funcionar como metáfora do estado atual das coisas (já que o lugar é propositadamente não identificado e genérico, e os personagens representam classes, etnias e personalidades distintas) até como o homem pode reagir diante de necessidades extremas. Na hora do desespero, por exemplo, uma mulher casada se vende antes do que uma prostituta, enquanto outra mulher casada e apaixonada desafia seu marido orgulhoso e “digno” para fazer o mesmo. Aqui há ainda exemplares claros e em sociedade de extremos de perdão, abnegação e altruísmo, mas também de egoísmo, oportunismo e completa falta de empatia – às vezes justamente de quem mais se deveria esperar. Não são muitos os filmes que tratam de tanta coisa e com certo sucesso ao mesmo tempo.

Outro mérito do filme, que aliás já caracteriza Meirelles, são as atuações. Juliane Moore (Magnólia, Boogie Nights), a única não infectada pela cegueira, consegue o que se espera de um papel tão acima dos outros como o dela. Entre os personagens periféricos, o melhor é Gael García Bernal (Diários de Motocicleta, Babel), que curiosamente não aparece tanto, mas é responsável por um personagem humanamente repulsivo, e pelo momento mais engraçado (e talvez ironicamente triste) do filme – numa referência a Stevie Wonder, em cena (pelo que li) improvisada.

Por outro lado, outra parte do mérito (e que pelo excesso audiovisual pode soar como demérito) parece muito mais de Saramago, desde as imagens até o fim, quando o roteirista Don McKellar (obviamente avalizado por Meirelles, que teve o “corte final” por contrato) encaixa uma narração em off para concluir o filme. Um final literário e didático demais, numa concessão pra explicar a quem não entendeu (?!). Uma pena, num filme que funciona melhor (e muito bem) justamente quando não explica, e sim explora.
Filme: Ensaio sobre a Cegueira (Blindness, Canadá/Brasil/Japão, 2008)
Direção: Fernando Meirelles
Elenco: Juliane Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Gael Garcia Bernal.

8mm
Menos mal: A versão que passou em Cannes tinha narração (de Danny Glover – com a venda preta no olho) também no começo. Não imagino como isso foi possível, porque no meio do filme Glover começa que discretamente (ou nem tanto) se torna uma narração enxertada de forma pouco sutil. Imaginar narração no início, meio e fim dessa maneira é visualizar um resultado que, como apresentado em Cannes, começou e terminou ruim.

Aposentados em atividade: E As Duas Faces da Lei realmente é tão ruim quanto eu imaginava. Aliás, o filme não é nem tão fraco, mas sim podre de genérico e medíocre. Durante mais ou menos uma hora e meia, o melhor do filme é lembrar como Robert De Niro e Al Pacino já foram bem aproveitados. Quando acabou o filme, só pensei em rever coisas como Bons Companheiros e O Pagamento Final – que nem são os melhores enquanto performances, mas têm valor afetivo, o que não vem ao caso. Além de Fogo contra Fogo, obviamente, o único filme de verdade que eles atuam juntos.

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

Um comentário:

Ana disse...

obrigada pelos comentários!!
adorei o que escreveu sobre Ensaio sobre a cegueira... mas com certeza o livro é bem melhor... alias sempre é bem melhor...Mas esse filme segue muito a risca o livro por isso acho que é tão bom!! bjocass