sábado, 14 de fevereiro de 2009

Falsa Loura*



Espelho quebrado

Carlos Reinchebach, 63, é um dos que defende mais abertamente o cinema “popular” no sentido financeiro do termo, idéia coerente não só com os que habitam sua obra, mas também com o ambiente de sua juventude. Em entrevista que vi há algum tempo não lembro onde, ele disse que sente falta dos anos 60 e 70, quando o preço do ingresso do cinema era equivalente ao da passagem de ônibus, e quando as classes C e D eram um público fiel das produções brasileiras. No mínimo simpático a essas camadas da população, a relação delas com as mais abastadas é o pano de fundo de seu último filme, Falsa Loura (idem, BRA, 2008), no qual Carlão (como é mais conhecido) revisita com relativo sucesso não só suas convicções sócio-políticas, como aprofunda (como poucas vezes já vi) o ser humano que é a personagem título.

Depois de uma citação de Sócrates, o filme começa um com dança mais do que sensual entre Regina e Silmara – respectivamente interpretadas por Luciana Brites e Rosane Mulholland. Essa última nos dá a entender, logo em seguida, ser uma operária que, além de sexo, exala arrogância e impaciência com mulheres sem metade do talento visual dela – ou seja, com quase todo mundo. Para completar bem esse raciocínio, ela berra para uma amiga: “todo mundo acha que eu faço programa, mas, olha, eu não sou puta” – não exatamente nessas palavras, talvez, embora a rispidez seja ainda maior do que a que você pensa. Na sequencia, ela “bate o ponto” ao se pegar no meio da rua com alguém que, até que se esclareça mais tarde, é mais estranho do que parece.

Essa primeira parte é uma introdução, que, assim como todo o resto do filme, questiona a imagem e a impressão das pessoas para si e para os outros. É bom dizer que, frases como “nem tudo é o que parece” ou “a primeira impressão (nem sempre) é a que fica”, se ditas numa discussão que quer se basear em argumentos, irritam qualquer um. Só que em Falsa Loura, felizmente, Carlão consegue trabalhar com esses pensamentos de “senso comum” (para ser educado) e transformá-los em um resultado eficaz como audiovisual.

Os personagens por quem devemos sentir empatia são membros das classes C e D, aqui desenhadas com naturalismo, que consegue viver muito bem com a questão política e social do filme, discreta e funcional. Os representantes das classes A e B (do empresário ao vocalista da banda), por sua vez, são pintados como predadores caricatos, o que ajuda na impressão ideológica de seu autor, mas destoa no que diz respeito às personalidades convincentes das operárias.

A loura
Silmara, assim como suas colegas tipicamente proletárias, passa longe da erudição e gosta mesmo é do “popular” – não sem razão, uns podem chamar de brega. A questão é que esse brega não é julgado, mas apenas transformado numa parte não só integrante como necessária ao mundo dessas mulheres, que sonham em transar com esses ídolos-fetiches. Esse sonho talvez exista nem tanto pelo sexo em si, mas pelo fato de atingirem um ápice teoricamente inatingível para elas, num misto de determinismo e preguiça – embora a situação seja muito mais complexa, trata-se de uma harmonia com a obra.

Dessa maneira, quando uma delas consegue realizar esse sonho a princípio utópico para todas do grupo, há também um conflito natural, entre pessoas que mal se conhecem e que vivem realidades distintas, numa relação que beira criador e criatura sem nada em comum. O ponto positivo é que esse relacionamento dos menos abastados diante dos objetos de admiração e cobiça, flui com certa naturalidade – dentro de uma dificuldade natural. Reichenbach é feliz ao mostrar que as interações ali não se baseiam nas diferenças sociais ou financeiras (que aqui destroem), mas sim numa coisa que todo ser humano sente: desejo.

Esse desejo é coerente com a citação a Sócrates, no começo, na qual se fala sobre o prazer e a dor, e como a busca por um significa estar sujeito ao outro. Mais do que isso, uma vez que o filme vai muito além de sua epígrafe, essa busca é capaz de mostrar a fragilidade de boas intenções, assim como da idéia do personagem diante da vida, ou de um simples fato, visto, sentido e interpretado de maneira diferente por quatro pessoas (diretamente) envolvidas nele.

O trabalho com pessoas e pensamentos populares, apesar do risco de ser seduzido e às vezes fisgado por inúmeros clichês, torna o trabalho de Carlão ainda mais interessante, uma vez que ele dá profundidade ao seu tema e aos seus personagens. Apesar dos estereótipos sem nenhuma carga humana, completamente distintos de Silmara e as do seu meio, eles acabam por se fechar numa obra coerente, do determinismo ao fatalismo melancólico.

Como um dos expoentes do movimento da “Boca do Lixo” dos anos 70, o gaúcho radicado em São Paulo mostra que sabe trabalhar com o “lixo” e o “luxo”, com ênfase nas aspas em ambos, e transformá-los num luxo de filme. Sem aspas – e com pouco ou nada de luxuoso, mas excepcionalmente bem acabado. Muito bom.

Fime: Falsa Loura (idem, Brasil, 2008)
Direção: Carlos Reichenbach
Elenco: Rosanne Mulholland, Djin Sganzerla, João Bourbonnais, Cauã Reymond, Mauricio Mattar


8mm
Mulheres

Curioso que, sem pensar previamente nisso, terminei vendo, em menos de uma semana, três filmes basicamente com mulheres e sobre mulheres, mas com praticamente mais nada em comum entre eles – além da qualidade. De Falsa Loura a 8 Mulheres, passando por Virgens Suicidas; do naturalismo ao coerente teatro caricato, flertando com um pouco de minimalismo pelo caminho.
De um Brasil proletário e conflituoso, mas felizmente não resumido a isso, a uma França fria, burguesa e ironicamente divertida, além de muito francesa – sem redundância ou hipérbole alguma no que digo. Para completar, todos trazendo consigo parte de suas influências, mas também funcionando como peças únicas de idioma próprio – mesmo que filhos das línguas mãe. Ô coisa boa essa diversidade...

Até onde você vai, QT?
Os filmes de Quentin Tarantino são uma droga. Primeiro você tem o contato inicial graças a um outro (primordialmente no cinema, quando não numa locadora ou emprestado), antes de passar você mesmo a comprar – o DVD. Depois você começa a aumentar a dose do medicamento (o filme) de tal maneira que, após tanto uso, você sabe que cada recaída (revisão) vai levar àquela sensação de “ah, foi bom, mas quero uma sensação nova”. Só que, depois de alguns dias de rebordosa (vendo outras coisas dificilmente do mesmo nível), lá está você pensando novamente no bendito entorpecente: o filme que só ele faz.
Essa semana vi o primeiro trailer do Bastardos Inglórios (tradução vai ser essa literal mesmo?), o novo dele. Quando soube do projeto, e da ligação com a segunda guerra mundial, fiquei meio ressabiado porque achava o assunto “sério” demais pra QT. Para um cara que se mostra obcecado por tanta coisa em sua obra, é inevitável achar que enfim ele vai ficar cansativo graças aos inúmeros maneirismos. Mas, se hoje uma pergunta permanece sem resposta pra mim, essa é: até onde vai o seu talento Tarantino?
Ps: O À Prova de Morte, o anterior dele lançado no festival de Cannes num pré-histórico 2007, permanece sem confirmação por aqui. Culpa da Europa Filmes...

Vistos e/ou revistos durante a semana:
* Falsa Loura (2008), de Carlos Reinchebach
* Jules e Jim (1962), de François Truffaut
* Além das Nuvens (1995), de Michelangelo Antonioni e Wim Wenders
* Blade Runner (1982), de Ridley Scott
* 8 mulheres (2002), de François Ozon
* Alma Corsária (1994), de Carlos Reinchenbach
* Garotos de Programa (1991), de Gus Van Sant
* Virgens Suicidas (1999), de Sofia Coppola
* Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha

Imagens em: http://www.revistapaisa.com.bbr/ e http://www.artcenicas.com/

* Coluna 70mm originalmente publicada no jornal semanário O Trombone – Itabuna-BA.

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